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Nas trevas da ignorância

Um relatório recém-apresentado nos EUA, baseado em nove anos de pesquisa, explica que é por pura burrice que castigamos o meio ambiente a nossa volta.

9 de dezembro de 2005 · 18 anos atrás

“Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”, dispõe categoricamente o artigo 3° da Lei de Introdução ao Código Civil, obrigando a todos a um comportamento de acordo com as normas do Estado, conhecidas estas ou não. Isso antecipa um sistema que só funciona porque as leis, no mais das vezes, seguem princípios lógicos – às vezes seguem interesses escusos e repugnantes, também – que o “homem médio”, mesmo que jamais tenha lido um código, pode deduzir usando o seu bom-senso. Isso também cria as excludentes de ilicitude do código penal, que livram ou aplicam de forma mais branda a pena – tornando inimputáveis – àqueles que, por deficiência ou retardo mental permanente ou temporário ou desenvolvimento intelectual incompleto – caso das crianças –, pratiquem o ato ilegal sem ter como discernir se aquilo é certo ou errado.

O que acontece, no entanto, se a pessoa que comete o ato não possui qualquer deficiência mental, mas, mesmo assim, não faz a mínima idéia das conseqüências práticas ou jurídicas de seus atos? A pergunta é boa porque, segundo pesquisas recentes, boa parte da população mundial sabe tão pouco sobre o meio ambiente que quase poderia ser considerada inimputável por suas atitudes com relação à natureza, como se o nosso conhecimento fosse equivalente a uma criança de poucos anos de idade.

Foi mais ou menos essa a informação trazida pelo relatório Environmental Literacy in America, elaborado em parceria pela The National Environmental Education & Training Foundation e o instituto de pesquisas Roper Reports, dos Estados Unidos. Em cerca de dez anos de pesquisas ambientais com o objetivo de avaliar o conhecimento ambiental dos EUA a conclusão a que chegaram foi que, embora as pessoas estejam mais e mais preocupadas com o meio ambiente, na verdade não sabem quase nada sobre ele.

Tocando a superfície

Os números são, realmente, contraditórios. Cerca de 95% da população dos EUA apóiam a educação ambiental nas escolas; aproximadamente 85% deles acham que as agências governamentais deveriam apoiar programas de educação ambiental; e 80% dos americanos acham que as companhias privadas deveriam treinar seus funcionários para ajudar a resolver pequenos problemas ambientais. Com tanta consciência, não é de se admirar que 70% das pessoas no país afirmem ter um conhecimento ambiental grande – a lot of – ou considerável – a fair amount of. Mas as pesquisas, realizadas desde 1997 com questões relativamente simples, de múltipla escolha – cada questão trazia quatro possibilidades de resposta: uma correta; uma plausível, mas errada; e duas que nem de longe poderiam ser a resposta correta –, contradizem essa crença.

Em um teste de 12 questões, mais de 66% dos pesquisados seriam reprovados e apenas 10% deles tirariam nota “A”, acertando 11 perguntas, mostrando que em um quadro de crescente conscientização, ainda falta informação de qualidade. E o que mais perturbou os pesquisadores é que, contrariando suas expectativas, a situação não vem melhorando. Pessoas formadas no ensino médio antes de 1970 – quando a questão ambiental começou a se tornar presente no meio social e acadêmico – demonstram igual ou maior conhecimento ambiental em comparação com quem se formou após 1990, quando a educação ambiental supostamente já era comum nas escolas.

E nem se diga que os pesquisadores não tentam facilitar as coisas. Durante o ano 2000, por exemplo, a questão energética foi vastamente discutida nos meios de comunicação dos EUA. Para ver o quanto do debate havia entrado efetivamente na cabeça da população, o teste realizado no ano seguinte foi direcionado para o mesmo tema. Apenas 12% das pessoas passaram no teste, acertando 7 ou mais das 10 questões apresentadas. A média foi de 4.1 acertos. Dentro disso temos que os homens acertam muito mais perguntas sobre o tema do que as mulheres; em uma reviravolta inesperada, os mais velhos acertam mais do que os mais novos, indicando que a educação ambiental dos norte-americanos decorre muito mais da vivência do que daquilo que é ensinado sobre o tema nas escolas; a costa oeste domina mais o assunto do que a costa leste; e o nível escolar é diretamente proporcional ao número de acertos.

Esses resultados não são exclusividade dos EUA. Em um estudo realizado em 1995 pela International Society Survey Programme, em que cooperaram instituições acadêmicas de 22 países, o quadro não foi muito diferente. Em questões do tipo “verdadeiro ou falso”, os EUA tiveram uma das médias mais baixas de acertos (4,2 acertos em 7 perguntas). Baixo, mas nada escabroso se considerados os resultados do Reino Unido (4,5), da Noruega (4,6) e da Nova Zelândia (4,7).

A culpa é da TV

A televisão já deve estar se acostumando a ser responsabilizada por boa parte dos problemas da humanidade. A juventude está alienada, a culpa é da TV. Violência? A culpa é da TV. Jovens grávidas? TV. A TV é o mordomo dos contos policias trazido para a vida real. Para piorar as coisas, agora vem o relatório da National Environmental Education & Training Foundation e do Roper Reports afirmar que boa parte da desinformação ambiental dos norte-americanos é culpa da televisão – da mídia, em geral, na verdade, mas a TV lidera a preferência da população como veículo de informação.

O problema, ao que tudo indica, é que os meios de comunicação tradicionais dos EUA trazem ao debate questões ambientais, complexas ou não, mas apenas tratam delas superficialmente, criando muitas vezes mitos e concepções equivocadas nas mentes do público em geral. Ou seja, enquanto por um lado é bom que tais assuntos sejam trazidos à baila, criando ao menos uma consciência pública de que os problemas existem, por outro a falta de informações aprofundadas deixa as pessoas à deriva em um mar de dados desconexos, que acabam se encaixando da maneira errada.

Essa tendência de simplificar questões complexas é provavelmente a causa porque 45 milhões de habitantes – adultos – dos EUA acham que os oceanos são uma enorme fonte de água potável; ou porque 100 milhões deles acreditam que a maior fonte de CFC (clorofluorcarbono) lançado hoje na atmosfera ainda são os aerosóis, quando, na verdade, essa substância foi banida das latas de spray em 1978; ou, ainda, porque o mesmo número de pessoas acredita que as fraldas descartáveis são o principal problema dos aterros sanitários, quando essas, de fato, representam não mais do que 1% dos resíduos que acabam despejados nesses aterros – produtos de papel são, de longe, o maior problema ambiental.

A maneira como tais mitos são formados nas mentes das pessoas, quase sempre, passa por imagens fortes e chocantes sendo veiculadas pelos meios de comunicação. Em 1969, o Rio Cuyahoga, no Estado de Ohio, concentrou tanta poluição e resíduos químicos e de óleo que a sua água simplesmente pegou fogo. As imagens de um rio em chamas chocaram tanto os norte-americanos que seguiu-se um período de limpeza frenética de fábricas e estações de tratamento de esgoto. Até hoje, quase quatro décadas depois do incidente, a população dos EUA, em sua maioria, ainda acha que a maior fonte de poluição dos rios e bacias é o despejo industrial. Trata-se de um engano. O que mais polui as águas são os resíduos de óleo e lixo e demais resíduos arrastados pelas águas da chuva.

Outro exemplo, que nos é muito familiar. Até hoje os navios são apontados como a maior fonte de poluição das águas marinhas por óleo por causa do acidente, em 1985, com o petroleiro Exxon Valdez, no Alaska. As imagens de uma baía paradisíaca coberta de um manto preto grudento, e de animais morrendo sufocados marcou tanto a mente das pessoas que elas (40% da população dos EUA) até hoje associam óleo nos mares aos navios. Os culpados, no entanto, são os próprios acusadores. Hoje, a maior fonte de poluição dos mares por derivados de petróleo é culpa dos proprietários de veículos, que não depositam em local adequado o óleo que trocam de seus motores ou que deixam sempre para amanhã o conserto daquele “vazamentinho” que suja o chão da garagem todas as noites. Com a chuva é esse o óleo que vais parar nos rios, lagos e, eventualmente, no mar.

O relatório da NEETF/Roper tem mais de 150 páginas, todas elas dedicadas à relação das pessoas dos EUA com o meio ambiente O quadro que ele apresenta é a nua e crua realidade da ignorância ambiental norte-americana. Mas será que só eles são assim? Dificilmente. As pesquisas feitas ao redor do mundo indicam que eles não estão sozinhos nas trevas. Qual seria o resultado de um trabalho assim feito aqui no Brasil? Talvez melhor, talvez pior, mas dificilmente muito longe do que foi descoberto lá. Quais seriam as notas de Lula e Bush em uma pesquisa dessas?

Será por isso – por causa da ignorância generalizada sobre o meio ambiente e seus problemas – que a proteção ambiental tem sido um caminho tão árduo? Se isso não justifica nossos erros, pelo menos explica vários deles.

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