Colunas

Considerações sobre meu bairro verde

Os arquitetos empolgados com a construção de Brasília ordenaram passar o trator em cima de tudo o que pudesse lembrar o cerrado original

10 de dezembro de 2017 · 6 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Food trucks não se importa em passar por cima de ninhos de corujas. . Foto: Marc Dourojeanni.
Food trucks não se importa em passar por cima de ninhos de corujas. . Foto: Marc Dourojeanni.

Morar em Brasília é uma experiência sui generis, como corresponde a essa cidade tão diferente. Morar no extremo da Asa Norte do Plano Piloto de Brasília é muito bom, especialmente para quem gosta de áreas verdes. Nesse setor, entre o eixo rodoviário e o lago, existe uma proporção de área verde que supera amplamente a construída, incluindo um pedacinho da vegetação original, cerrado com mata ciliar, conhecido como Olhos D’Água. Todo o resto é, na verdade, uma enorme plantação de mangueiras esparsas. Os vizinhos dão um bom uso a essas áreas, mas, sem dúvida, poderiam ser melhor aproveitadas se forem tomadas algumas medidas.

De fato, as partes verdes que se encontram entre os blocos são bastante usadas, especialmente para passear com o impressionante número de cachorros do bairro. E, evidentemente, o parque Olhos D’Água também é muito bem aproveitado. Neste caso, especialmente pelos que praticam atividades físicas, pelos meninos que ali brincam e pelos namorados.  Uns poucos observadores da natureza complementam os usuários. Mas, a maior parte da extensa área verde do bairro, em especial a que fica no extremo norte, é muito pouco aproveitada.

O assunto dos cachorros é engraçado. Há, obviamente, cachorros de todo tipo. Os minúsculos e ridículos passeando com homens grandes e fortes e os enormes mastins passeando por mocinhas sem força para controlá-los. Pode se ver uma moça com dois cães, cada um disparado para o lado oposto com ela enrolada no meio, não sabendo o que fazer, com o seu telefone celular numa mão e a bolsa de plástico cata-cocô na outra. Outros e outras, mais confiantes, soltam os seus bichos que, sem coleiras, brincam felizes no parque. Os cachorros soltos são um espetáculo à parte. É óbvio que já se conhecem e que devem esperar com desespero o momento de se reencontrar no dia seguinte.  Os donos dos bichos se conhecem e às vezes se reúnem em grupos grandes para conversar sobre seus cães. Quase nunca se observam brigas de cachorros. Pelo contrário, mais de um romance entre os donos e donas deve ter começado nesses eventos espontâneos. O uso dos celulares é onipresente. Raras são as passeantes que dão bola as necessidades dos seus cachorros. Só deixam de falar ou olhar nos seus celulares na hora de recolher o cocô. De fato, a maior parte dos donos e passeantes profissionais de cachorros cumprem com a instrução de recolher as excreções. Mas, tem alguns que apenas dissimulam levando bem à vista a bolsa de plástico, mas que nunca se agacham para usá-la.

Foto: Marc Dourojeanni.
Foto: Marc Dourojeanni.

Obviamente as áreas verdes entre as quadras sofrem algumas invasões. Os vizinhos podem se surpreender tendo em baixo das suas janelas uma barraca improvisada com um casal de “sem tetos” que exibe sem pudor sua vida íntima, incluindo as bebedeiras e as brigas e que fazem um churrasquinho com lenha no pé da árvore mais bonita. O mais irritante desse tipo de invasores é a sujeira indescritível que produzem, afetando uma área enorme. Quando eles estão por perto, o número de passeantes, principalmente o feminino, diminui drasticamente. Após semanas de presença constante, esses campistas informais somem, possivelmente por conflitos com a lei ou quiçá pela chuva. Mas voltarão. Também entram na área verde, possivelmente com algum tipo de autorização, vendedores ambulantes motorizados de hambúrgueres e de outros alimentos. Para isso passam com as suas camionetes na grama, praticamente acima do ninho de corujas buraqueiras que lá moram desde faz muito tempo.  De noite, fazem uma tremenda barulheira para atrair clientes. E, claro, o principal ocupante da área verde, e o mais constante e sem dúvida também o mais influente é uma igreja que decidiu ocupar a metade do espaço. Ademais, é frequente observar fogos que, normalmente, são controlados dentro das suas primeiras 24 horas.

Mas, em geral, essas áreas verdes são uma maravilha para o bairro que, estando no centro de uma cidade de três milhões de habitantes, a terceira maior do Brasil, tem ar puro — exceto quando o vento traz o cheiro da estação de tratamento de esgotos instalada perto — e muito espaço para espairecimento.  Apesar da pouca diversidade da sua flora, essas áreas verdes exibem um número considerável de aves, algumas muito bonitas. Porém, medidas simples poderiam aprimorar a situação e, em especial, o aproveitamento dessas áreas.

Foto: Marc Dourojeanni.
Foto: Marc Dourojeanni.

A priori o uso limitado das partes um pouco mais afastadas seja devido à falta de segurança. Mas, se foram mais usadas, esse inconveniente desapareceria. Acredito que, no essencial, seu desuso tenha a ver com o seu abandono e falta de atrativo. Verdade que esses espaços são verdes, mas como mencionado, parecem uma velha plantação abandonada de mangueiras, muito espaçada. Apenas na proximidade dos edifícios parece que alguns vizinhos — ou os passarinhos — se aborreceram com a monotonia e plantaram alguma outra coisa, como cajueiros, guaiavas, jacas, frutas do conde, abacates e pouco a mais. Quase não existem palmeiras. Esses parques poderiam ser verdadeiros jardins botânicos ou, pelo menos, coleções de árvores nativas ou exóticas, de fácil manutenção, fazendo-os mais úteis e especialmente atrativos. Tampouco seria difícil complementa-os com algumas trilhas de grava e bancos rústicos. Tem espaço para tentar desenvolver algumas hortas, coisa que dá para ver que já foi ensaiada sem sucesso por alguns vizinhos. Dedicando um par de jardineiros mais um pequeno orçamento para fazer as trilhas e providenciar mudas e adubamento, dá para fazer tudo isso. Não tem que ser feito tudo ao mesmo tempo. O jeito é adiantar gradativamente para que os usuários se acostumem a usar as melhorias. É evidente que a fauna aviária, que já é grande, aumentaria na mesma proporção na que se diversifique a oferta de espécies de plantas, criando outro atrativo.

De outra parte, dá pena ver o desperdício das frutas que essas árvores produzem. Claro que sempre aparece alguém que colhe o que pode, mas considerando a altura dessas árvores que nunca foram podados, a tarefa fica difícil para os amadoristas. A verdade é que existem tantas mangueiras em Brasília que acredito justiçar-se há um simples estudo econômico para o seu aproveitamento como alimento para animais ou outros usos, pelo menos como adubo. De outra parte, a acumulação de frutas apodrecendo no chão não contribui para a limpeza nem para a segurança dos caminhantes.

O pecado original dessas áreas verdes remonta à construção de Brasília durante a qual os arquitetos empolgados com a obra humana esqueceram-se da natureza e ordenaram passar o trator em cima de tudo o que pudesse lembrar o cerrado original. Foi um milagre — na verdade foi uma tremenda luta — a salvação do Parque Nacional de Brasília e do Jardim Botânico e, em especial, do minúsculo Olhos D’Água, dentre poucas áreas naturais a mais. De ter então lembrado isso o jardim já estaria feito.  É muito provável, ademais, que esta nota apenas reitere muitas iniciativas anteriores. Mas, como nunca é tarde para aprimorar a qualidade da vida, insistir não causa dano.

 

Leia Também 

A impressionante natureza no sul da França

Muito mais que Machu Picchu

Problemas ambientais graves e supérfluos

Problemas ambientais graves e supérfluos

 

 

Leia também

Colunas
7 de março de 2017

Problemas ambientais graves e supérfluos

A habitual falta de verba na área ambiental já deveria sinalizar que é necessário priorizar os grandes problemas ambientais e deixar de lado os probleminhas contornáveis

Colunas
21 de setembro de 2017

Muito mais que Machu Picchu

Os atrativos do Peru ultrapassam as belezas da cidade pré-colombiana, exemplo disso é o Parque Nacional Huascaran, com 340 mil hectares de estonteante beleza

Notícias
24 de abril de 2024

Na abertura do Acampamento Terra Livre, indígenas divulgam carta de reivindicações

Endereçado aos Três Poderes, documento assinado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e organizações regionais cita 25 “exigências e urgências” do movimento

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Comentários 2

  1. Ana Cristyna diz:

    Sou de Brasília e sempre admirei essas áreas verdes, especialmente a da minha quadra, fonte de inúmeras brincadeiras para a molecada Aqui há Ipês, mangueiras e abacateiros, que atraem sabiás, pica-pau, bem-te-vi, maritacas, beija-flores, alma-de-gato, anu-branco, entre outros. No entanto, tenho reparado cada vez mais o abandono dessas áreas com o acumulo de entulho, material orgânico dos jardins e lixo, fora que as árvores não recebem cuidados p evitar acidentes. Quando a administração pública aparece eles cortam as arvores e nunca plantam outra no lugar. Falta zelo da administração pública, mas falta também amor dos brasilienses e seus moradores pela cidade! P.S. Meus 4 huskies adoram desbravar as áreas verdes de Brasília, e eu sempre rezo para que no nosso caminho não apareça nenhum gato!


  2. Edvard Pereira diz:

    Moro em Brasília praticamente desde o início da sua construção. Lembro-me que naquela época não havia essa preocupação em preservar o Cerrado, o qual, era enxergado por não ter interesse

    Moro em Brasília desde praticamente o início da sua construção. E naquela época não havia essa preocupação em conservar ou preservar o Cerrado. Ele era visto como um ecossistema que não tinha nenhum valor econômico ou ecológico. E, como bem disse o autor desta bela reportagem no último parágrafo, as construtoras (nem digo os arquitetos) colocaram toda a flora nativa no chão para fazerem brotar a Nova Capital do Brasil (Dane-se o Cerrado! devem ter pensado). Posteriormente, com a ocupação das quadras e superquadras deram início ao processo de arborização da cidade. Num primeiro momento com árvores geralmente exóticas. Tanto que é fácil encontrar espécies de outros biomas plantadas em várias partes da cidade,e, que, vez por outra, principalmente no período das chuvas, causam sérios transtornos aos moradores. Só mais recentemente iniciaram a arborização ou a substituição de árvores derrubadas naturalmente ou mortas, ou aquelas que colocam em risco a segurança dos moradores, por árvores nativas do Cerrado, como ipês, pequis, barus, jatobás, cagaitas e outras variedades.