Criar uma estrada-parque dentro de um parque nacional é um silogismo redundante. Ao associar as estradas com os parques estabelecidos para conservar a natureza, se vende a ideia de que fazer estradas é bom para conservá-la e redunda pretendendo que elas também contribuem para proteger um parque nacional. Mas a verdade é que as estradas, no Brasil, são o principal vetor da destruição das florestas naturais, como as que ainda sobrevivem no Parque Nacional do Iguaçu, o segundo mais antigo do Brasil. E é contra esta joia natural que corre, em caráter de urgência, um projeto de lei que permite a construção de uma estrada que a partirá pela metade e abrirá o seu coração.
O Parque Nacional do Iguaçu, estabelecido em 1939, cobre 185.262 hectares. Parece grande, mas é a única ilha verde num imenso oceano de soja, pastagens e outras atividades agropecuárias. Os 80% das florestas originais do Estado do Paraná já foram destruídas e esse Parque é o maior bloco florestal remanescente. Ou seja, que deve ser protegido como “ouro em pó”. A renovada pretensão de abrir a chamada Estrada do Colono (17,5 quilômetros) é, pois, uma ameaça extrema à sobrevivência dessa única e isolada amostra da biodiversidade do Estado.
Os argumentos esgrimidos pelos promotores são fracos e distorcidos. Afirmam, por exemplo, que o fechamento dessa estrada é “uma injustiça histórica” quando, na realidade, quando fechada era apenas uma trilha carroçável; que atende ao clamor social de décadas do “povo paranaense”, mas, na verdade, o povo paranaense é contrário ao projeto que apenas beneficiaria (e muito pouco) a um punhado de cidadãos que percorrendo uns poucos quilômetros a mais têm alternativas de comunicação devidamente asfaltadas. Os promotores chegam ao extremo ridículo de afirmar que “a abertura da estrada contribuirá com a preservação da fauna e da flora dessa unidade de conservação, elevando, inclusive, o nível de consciência da população”, ignorando que essa estrada ademais de interromper a passagem da fauna será, como foi no passado, aproveitada por caçadores furtivos e extratores ilegais de palmito e de outros produtos da mata.
Os dois artigos do projeto de lei PL984/19 são um exemplo de erros de fundo e de forma, como se discute a seguir:
- As estradas-parque são uma modalidade de preservação da paisagem de estradas que percorrem locais naturais ou antropizados que são particularmente belos. Se caracterizam, tipicamente, por ter vegetação arbórea ou arbustiva na área de influência direta e visual do eixo rodoviário e estacionamentos amplos desde os quais se pode apreciar em segurança as paisagens. As estradas-parques não têm a função de preservar a diversidade biológica, mas podem contribuir a este objetivo. Podem passar por terras públicas tanto como privadas. Existem em muitos países, mas são especialmente aproveitadas nos EUA tanto no nível federal como estadual.
- Nenhum dos dois artigos do projeto de lei PL984/19 explica, para o caso brasileiro, a finalidade de uma estrada-parque. Essa deficiência é séria no caso específico da Estrada do Colono (artigo 1º), mas é muito pior no caso do artigo 2º, que modifica a Lei 9.985 (Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza-SNUC), introduzindo nela uma nova categoria de unidade de conservação de uso sustentável sem sequer explicar o que é e para que serve. Isso provocará muitos problemas no futuro. Diz, pelo contrário, que “estrada-parque “é uma via rural – estradas e rodovias – definida na Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, Código de Trânsito Brasileiro, aberta à circulação pública”.
- Dito de outra forma, essas novas unidades de conservação não seriam administradas pelo ICMBio senão por outro setor, sem sequer mencionar a necessidade de coordenação intersetorial. Não fica claro, sendo assim, a necessidade de se modificar a lei do SNUC.
- Cabe dizer que, de se criar a categoria de estrada-parque estas, corretamente, seriam unidades de conservação de uso sustentável nas que se associa uma estrada, construída com características especiais, com uma área suficientemente protegida para garantir a qualidade paisagística natural ou tradicional. A proteção do entorno natural pode ser dada pela categoria de área de proteção ambiental (APA) ou por outras que não impliquem necessariamente na posse da terra pelo Estado.
- Os autores do projeto de lei parecem ignorar que já existem estradas-parque legalmente estabelecidas no Brasil. Existem no Pantanal de Mato Grosso do Sul (MS-184 e MS-228) desde 1993 e no Pantanal de Mato Grosso (a MT-060 ou Transpantaneira) desde 1997. Essas estradas-parque obedecem a todas as pautas técnicas recomendáveis, inclusive estabelecem as coordenações intersetoriais necessárias.
- No entanto o problema principal deste projeto de lei é que atenta contra o artigo 225 da Constituição Federal ao ameaçar o patrimônio natural da nação mediante a construção de uma estrada dentro de um parque nacional, ou seja, uma área de proteção integral nas que a mesma lei que se modificaria (articulo 7º, inciso 2º) admite apenas o uso indireto dos seus recursos naturais, o que seria violado pelo mero fato de eliminar suas árvores e outros seres vivos ao longo de 17,5 quilômetros (mais de 50 hectares).
- Finalmente, como apontado, é absurdo pretender criar uma área protegida (estrada-parque) dentro de um parque nacional que já brinda absoluta proteção legal à biodiversidade. É como pretender construir e fazer voar um avião dentro de outro, maior e melhor. Por este motivo e por outros já mencionados a reforma legal proposta é nula ipso jure.
Seria, sem dúvida, muito positivo complementar a legislação do SNUC estabelecendo as estradas-parque e, também, os rios cênicos, cuja definições devem ser bem estudadas e, evidentemente, consultadas com as autoridades de transporte terrestre e fluvial, dentre outras, já que a gestão destas áreas deverá, inevitavelmente, ser compartilhada. Mas jamais poderia se construir uma estrada-parque, nem tampouco declarar um rio cênico dentro de unidades de conservação de proteção integral, pois nelas seriam supérfluas. Pelo contrário, muitas unidades de conservação de uso sustentável assim como seus rios e lagos se beneficiariam transformando as estradas e corpos de água navegáveis em estradas-parque ou rios cênicos, para benefício de todos e em especial do turismo.
Nada disso está no projeto de lei PL 984/19 que é, apenas, uma perigosa e confusa artimanha para favorecer uns poucos contra o interesse geral.
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O Projeto é bom. A Estrada existe bem antes da criação do Parque. Não vai desmatar nada, apenas reativar a área onde a estrada já existia. Quem não conhece não sabe o prejuízo que o fechamento causou para essa região, principalmente Serranópolis e Capanema. Perigo com a reabertura?. São os próprios colonos dos arredores que cuidam da boa preservação do Parque!. Um contorno de 200 km toda vez que queremos visitar nossos parentes e amigos que estão a 20, 30 km de distância!. Dá pra conciliar tranquilamente desenvolvimento e preservação, ainda mais sabendo que no lado Argentino, no mesmo Parque existem duas estradas assim e também a Rodovia das Cataratas no mesmo Parque. Abertura já !
Em todo o mundo existem estradas parque. Além de Europa e EUA, nosso vizinho argentino tem estrada dentro do Parque que se avizinha ao nosso Parque Foz do Iguaçu. Vamos avançar e colher as boas práticas dos demais países. Os maiores fiscais das UC deveriam ser seus moradores.
Essa estrada é de uma canalhice sem tamanho
Obrigado Marc, pelo texto oportuno, necessário e preciso. Que ninguém mais caia nesse discurso vazio, traiçoeiro e danoso de que cortar um Parque Nacional com uma estrada com motivações econômicas – para benefício de uns poucos, e prejuízo de todos nós – ajudaria a conservá-lo.