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Diários de motocicleta

De Sérgio GalliPaulo Bessa,Gostei muito de sua crônica "Diários de motocicleta". Finalmente alguém clama contra a tirania não só da motocicleta,...

Redação ((o))eco ·
30 de janeiro de 2006 · 18 anos atrás

De Sérgio Galli

Paulo Bessa,

Gostei muito de sua crônica “Diários de motocicleta”. Finalmente alguém clama contra a tirania não só da motocicleta, mas principalmente do automóvel. Não sei dirigir, assim, todo santo dia tenho de encarar uma caminha cheia de riscos. Furar farol vermelho é praxe, mais do que isso, para que é uma vitória para os motoristas. Já que você fala em idade média, quem sabe se a volta do empalamento resolveria. Vamos acabar com o automóvel antes que ele acabe conosco, pois as cidades estão reféns do automóvel e as pessoas, escravas.

Tomo a liberdade de mandar em anexo uma crônica minha sobre o assunto publicada no sítio www.anjosdeprata.com.br.

Cordialmente,

Allegro Misantropo XII
(ao som do segundo movimento, a marcha fúnebre (adágio assai), da terceira sinfônica opus 55 (Eroica) de Ludwig van Beethoven)

Ele caminhava e meditava – igual a todos os santos dias – enquanto ia ao trabalho. Há uns sessenta, setenta, oitenta, noventa, cem anos a humanidade acabara e o homo sapiens sapiens fora extinto. Em janeiro 1945, o exército vermelho chegava ao portal do inferno – Auschwitz, Cracóvia, Polônia – e libertava os poucos sobreviventes daquele campo de concentração nazista. Em fevereiro, os aliados bombardearam e praticamente destruíram a cidade alemã de Dresden, com a Alemanha já quase derrotada. E maio do mesmo ano, a rendição dos alemães. E, finalmente em agosto, os Estados Unidos da América lançaram as bombas atômicas primeiro em Hiroshima e depois em Nagasaki. A maior carnificina da história sanguinolenta do maior predador e carniceiro dos animais chegava ao fim. Daí surgiu o homo sapiens demens. Ele chega ao primeiro semáforo e após alguns minutos de aflição e angústia consegue sobreviver. Já chegaremos às explicações. Pois bem, nesse interlúdio apocalíptico, guerra fria, Vietnã, Argélia, Afeganistão, Líbanos, Sudão, Congo, faixa de Gaza…. ad infinitum. E na virada do segundo para o terceiro milênio o advento do homo demens demens que definitivamente subjugou o homo sapien demens. E é justamente nesse período que surge o homo automobilis, a subespécie mais predatória que caminha para se tornar dominante. Ele chega ao segundo semáforo e, tremebundo, sobrevive. Mais um pouco de história. A revolução industrial iniciada em meados do século 19 principalmente na Inglaterra, na esteira dos ideais iluministas da revolução francesa de 1789, e do positivismo, deu início a um progresso científico e tecnológico jamais visto na história, claro, com um custo social devastador, destruidor e sangrento, mas isso é apenas um detalhe. Não por acaso no mesmo instante em que surgia a revolução industrial surgiu também o movimento luddista (erroneamente chamado de reacionário e retrógrado, é justamente o contrário dessa afirmação) que anos mais tarde ainda seria uma referência. Uma das jóias do progresso foi o automóvel. No começo, inofensivo, apenas mais um meio de transporte a concorrer com charretes, bicicletas, pedestres, uma novidade que deixava todos perplexos e entusiasmados. Logo, o automóvel começou a ocupar espaço e mostrar suas garras. Três monstruosas indústrias surgiram em torno dele: a primeira, óbvia, a automobilística, depois a petrolífera e a de construção civil. Ele chega ao terceiro semáforo…. Primeiro o automóvel ocupou as ruas. Acabou, lenta e gradualmente, com as ferrovias. Exigiu a construção de largas avenidas, auto-estradas velozes e furiosas. Obrigou a expansão desordenada das cidades rumo aos subúrbios, ou seja, grandes deslocamentos das pessoas em direção do trabalho ao lar e vice-versa. Os transportes públicos foram uma breve concessão, restritos aos que ainda não conseguiram adquirir um automóvel. O passo seguinte foi ocupar as moradias. Jardins, jamais, tornaram-se garagens. Nos novos edifícios residenciais ou comerciais, o conforto era para o automóvel e não para os moradores. Assim, um apartamento médio tinha 70 metros quadrados e duas ou três garagens. Agora, já inseguro e temeroso, o quarto semáforo. Ainda está vivo. Ele é invisível aos olhos escurecidos pelo vidro fume do automóvel em que se refugia o homo automobilis. Não satisfeito, exigiu as calçadas. Foi prontamente atendido. Surgira o homo automobilis. Os poderes públicos – agraciados com generosos e polpudos mimos – foram submendo-se submissamente às pressões das três indústrias – incentivos fiscais para construção de novos parques industriais automobilísticos; invasões e ocupações em países produtores de petróleo (claro, em nome da democracia, da liberdade, e de Deus); novos viadutos, túneis, avenidas, estradas. O critério ou o índice para sae mediar a “saúde” da economia era o aumento das vendas do automóvel. Ao mesmo tempo, as cidades diariamente conviviam com enormes congestionamentos. O noticiário era tedioso e enfadonho: todo santo dia uma repórter dentro de um helicóptero percorria as principais vias e repetia o jargão de sempre: “congestionamento chega a tantos quilômetros. Recorde do ano.” Em seguida, entra a propaganda de uma montadora! As cidades tornaram-se reféns do automóvel e as pessoas escravas do homo automobilis. Esbaforido olha para os lados, quinto semáforo. A chamam isso de acidente de trânsito. Por que não crime? Pergunta inconveniente. Ar irrespirável. Calor insuportável. Deserto concreto. Chumbo. Dióxido de Carbono. Enxofre. Os gases exalados pela flatulência do homo automobilis contaminaram o ambiente. Para se proteger dos raios ultravioletas que romperam a camada de ozônio, o homo automobilis confinou-se em seu veículo, protegido por vidros escuros, camadas de blindagem. Além disso, por um processo darwiniano adaptativo, ao aparelho auditivo esquerdo foi acoplado o telefone portátil. Impedido de sair por causa do ambiente inóspito e selvagem (numa cultura individualista, consumista, narcisista e egoísta, não teve incômodo nenhum) esse novo membro foi de muita utilidade. Em seu novo domícilio-casamata, o homo automobilis se alimentava com pedidos aos serviços de entrega a domicilio (pizza, hambúrgueres, refrigerantes, cervejas de quinta categoria, etc, e claro, água, o produto mais raro e escasso). Mas o barulho ensurdecedor expelido pelo automóvel tornara-se insuportável e nada o aplacava (aquele ruído estridente que rugia das rádios instaladas nos automóveis só tornava o problema ainda mais tonitruante). Tantas poluições causaram uma epidemia de cânceres, depressões, estresses, acidentes vasculares cerebrais. Metástase urbanística/automobilística/tecnológica/desenvolvimentista/iluminista/irracionalista. Mas a fúria desse predador de lata era insaciável, ilimitada. Hora de atacar/acabar/invadir parques praças, jardins das casas, jardins botânicos, hortos florestais, uma árvore em pé deve logo ser abatida. Logo, tudo isso virou estacionamento, claro, instalou-se uma guerra com direito a mortos e feridos. Tudo isso por causa de um monte de lata de 300 quilos. Sabedoria ímpar. Com um apetite insaciável, o homo automobilis exigia mais e era prontamente atendido. O governo apresentou um projeto de lei que acabava com a indústria da multa e o departamento de trânsito. Mandava desligar os semáforos e apagar as faixas de pedestres. E determinava um prêmio pecuniário para quem atropelasse e, conseqüentemente, eliminasse um pedestre (vulgo otário). Removido o estorvo (o pedestre) o mundo livre e o livre mercado não tinham mais obstáculos pela frente, pedras do meio do caminho. Além disso, ganhava pontos na carteira e a cada 10 pedestres eliminados, concorria a um superprêmio. Essa premiação merecia algo portentoso, megaespetáculo, tipo essas Grandes Convenções promovidas por Mega Corporações (por exemplo, montadoras [sic]) em que os melhores dos melhores, o empreendedores, são homenageados, condecorados, recebem patentes militares, seguido de um coquetel com direito a show de strip-tease. Assim, numa dessas Convenções, o homo automolis se levantava e anuncia que em uma hora havia exterminado doze pedestres. Ovações, gritos histéricos. Hinos eram tocados. Marchas militares. Glórias. Aleluias. Homenagens ao vitorioso.A medida previa a extinção lenta e gradual dos pedestres para que as vias e as calçadas fossem totalmente liberadas para o tráfego de automóveis, que teriam apenas de suportar os inevitáveis congestionamentos. Preço do progresso. O objeto claro do desejo era satisfeito. Sucesso não tem preço. Desce redondo. A máquina mortífera triunfou. A máquina assassina triunfou.
Ele chega ao sexto semáforo, verde para pedestre, respira fundo, sobreviverá ao sétimo?
Sugestão de leitura: “Apocalipse motorizado”, Ned Ludd, Conrad Editora.

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