Em 14 de junho de 1937, o presidente Getúlio Vargas foi a Itatiaia num impecável terno preto inaugurar a primeira Unidade de Conservação do Brasil: o Parque Nacional do Itatiaia, que protege o Pico das Agulhas Negras. Sessenta e oito anos depois, o aniversário do parque foi novamente marcado pela presença de políticos. Mas desta vez, eles não foram convidados. Pelo menos não pelas pessoas que trabalham ali.
Vereadores de diferentes municípios, deputados, representantes do Ministério do Turismo e do Governo do Estado cancelaram seus compromissos para prestigiar, em plena terça-feira, o lançamento da ong SOS Parque Nacional de Itatiaia. Diferentemente da maioria das instituições do gênero, esta já nasceu com apoio político e patrocínio de empresas como a Votorantim-metais e a Unimed. Tem até madrinha que vive em palacete. É Amanda Garotinho (foto abaixo), filha da governadora do Rio, Rosinha Garotinho. Coincidência ou não, ela estava com um terninho cor-de-rosa apagado. O mais curioso é que a ong quer salvar o parque do Itatiaia sem contar, em seus quadros, com nenhum ambientalista.
Talvez por isso o prestígio da ong só chegue até o portão do parque. Dali em diante, ela não é bem-vinda. Principalmente por ter se apropriado indevidamente do nome e da logomarca da unidade. Para Léo Nascimento, ex-chefe do parque, trata-se de uma intervenção de fora para dentro, planejada para ganhar dinheiro às custas dos recursos naturais do Itatiaia. “É uma das piores coisas que já vi em mais de 35 anos de serviço público”.
Segundo o presidente da ong, Nilson Neves (candidato derrotado cinco vezes à prefeitura de Itatiaia), o atual chefe do parque, Henrique Zaluar, autorizou tudo. Mas não há provas. Pelo contrário, há muita controvérsia. No dia 6 de junho, Zaluar pediu demissão por motivos familiares e, mesmo sem ter um substituto oficial e ainda responder pelo cargo, arrumou as malas e desceu para o Rio de Janeiro. Desde então está incomunicável. Em seu lugar, ficou como chefe interino Sérgio Sarahyba, que tentou conter a situação com panos quentes, mas acabou se queimando.
Sarahyba conta que entre o final de abril e o começo de maio, Zaluar lhe pediu para receber os representantes da ong que iam pela primeira vez ao parque se apresentar. Disseram que queriam criar uma parceria para arrecadar fundos para projetos sócio-ambientais ligados ao parque – ainda que eles não soubessem quais. No mesmo dia, chegaram a conversar rapidamente com a bióloga Nair Baumeratz, uma das fundadoras do núcleo de Educação Ambiental da unidade, atrás de idéias. Ela explicou como funciona seu trabalho, mas só. Nair e Sarahyba nunca mais escutaram falar da ong até começaram a chegar os convites da festa de lançamento, que aconteceria ao lado da sede do parque, bem no dia de seu 68º aniversário.
O convite continha as logomarcas da Unidade de Conservação e do Ibama e trazia, como responsáveis pelo evento, os nomes de Henrique Zaluar, Nilson Neves e do prefeito de Itatiaia, Jair Alexandre Gonçalves. Mas a festa do aniversário já estava definida? Que ong era aquela? Essas foram as duas perguntas que os servidores do parque fizeram ao cobrar explicações de seu dirigente. Não obtiveram resposta. O máximo que conseguiram foi mandar no dia 25 de maio uma carta para o gerente-executivo do Ibama no estado, Edson Bedim, com cópia para Zaluar, perguntando se o Instituto tinha ciência do uso das marcas. Também não tiveram nenhum retorno. O convite anunciava a presença da ministra Marina Silva no evento, mas no dia o deputado federal Paulo César Baltazar (PSB-RJ) foi anunciado como seu representante. A assessoria da ministra nega que tenha enviado alguém à cerimônia.
Às vésperas do aniversário, a unidade estava sem chefe e sem festa de aniversário oficial. O chefe substituto, Sérgio Sarahyba, admite que no primeiro encontro com a ong sugeriu que o lançamento acontecesse no dia do aniversário do parque, mas ao receber a programação discordou de alguns pontos e não assinou embaixo. Segundo a vice-presidente social da ong, Dagmar Rezende, Sarahyba foi procurado várias vezes e sabia que o evento iria acontecer. Ao assumir a direção do parque uma semana antes da festa, ele não cogitou impedi-la. “O tamanho da lista de convidados me assustou. Fomos atropelados. Não poderia vetar o acesso de tanta gente a um parque público”. Correção: acesso a uma requintada festa em alto e bom som – para azar da fauna local.
O evento aconteceu a menos de cem metros da sala de Sarahyba, mas ele se recusou a comparecer: “Me abstenho da convivência”. “Sarahyba poderia estar aqui para conseguir mais recursos para a unidade. Está perdendo a chance de conversar com gente do governo do estado, até do governo federal”, opinou Dagmar.
Estava perdendo muito mais que isso. Se estivesse lá, talvez tivesse rido com a gafe de Cláudio Baratta, subsecretário adjunto de políticas ambientais do estado do Rio. Ao falar sobre as belezas de Itatiaia, parabenizou a ong, que sequer começou a atuar no local, pelo estado em que se encontra a região, quando o discurso dos demais convidados era justamente o de querer recuperar o parque e seu ameaçado entorno. Pouco depois, Baratta revelou a O Eco o que ele realmente sabia: “Com a entidade, uma brecha vai ser aberta para que o governo do estado do Rio também possa se envolver no parque nacional, que é uma unidade federal”.
Além de permitir essa brecha, a ong tem outras características, no mínimo, estranhas. “Ela foi criada em setembro de 2004 por homens públicos com experiência na área empresarial que resolveram dar um pouco de seu conhecimento em prol da natureza”, explica o presidente Nilson Neves (foto). “Oficialmente, nosso objetivo é promover junto com o parque seminários para determinar suas prioridades. Nós nos comprometemos a buscar no mundo empresarial, até internacionalmente, recursos econômicos para qualquer projeto que o parque necessite”, e extrapola, “queremos combater a fome, o desemprego, promover a inclusão social”. Nilson não deixou claro como o parque poderia ajudar a enfrentar esses problemas. De certo, a fome não dá. Pois caçar e extrair palmito dentro de seus limites é crime.
Dois anos atrás, soaria descabida a proposta de angariar recursos para o Parque Nacional do Itatiaia. Até o começo do governo Lula, sua chefia tinha renovado a frota de carros (10 novas viaturas), recuperado abrigos, implantado sistema de comunicação por rádio em todo o parque e aplicado cerca de 44 milhões de reais em multas (a maioria devido a incêndios florestais, corte e distribuição ilegal de palmito e construções irregulares em área de proteção). Além disso, criou a PrevFogo, uma brigada composta por 17 homens para combater os incêndios que ameaçam o parque anualmente. Hoje, a história mudou. E os recursos são mais que necessários.
Pouco ou quase nada do que foi conquistado durante a chefia do médico-veterinário Léo Nascimento (foto), que deixou o cargo em abril de 2004, ainda existe. “Dirigi outros órgãos e sei como funciona a máquina do governo. Sei a quem pedir dinheiro”, conta Léo Nascimento, ao avaliar o sucesso de sua gestão. No ano passado, ele foi substituído por Henrique Zaluar, recém-concursado no Ibama.
Ambos reconhecem que dirigir um parque nacional não é fácil, pois além de ser alvo constante de palmiteiros ilegais, a reserva enfrenta um sério problema de regularização fundiária. No papel, a área mede 30 mil hectares, mas apenas 10 mil pertencem à União. Estima-se que existam 190 sítios dentro da unidade de conservação (incluindo cinco hotéis), e 360 moradores. Em fins de semana e feriados essa população dobra. “A parte baixa do parque, onde ficam as cachoeiras e a maioria das casas, é praticamente uma Área de Proteção Ambiental (APA)”, diz Léo Nascimento. O que significa dizer que, ali, quase tudo é liberado. Por lei, os Parques Nacionais são Áreas de Proteção Integral, destinadas apenas à conservação da biodiversidade, à pesquisa científica, à educação ambiental e à recreação. Neles é proibido explorar recursos naturais ou ter propriedade particular.
A parte baixa do parque é a mais visitada. Recebe cerca de 80% das 70 mil pessoas que passam pela unidade de conservação todos os anos. A região é de fácil acesso e abriga uma dezena de cachoeiras e mirantes. Os outros 20% preferem se aventurar na parte alta, onde as grandes atrações são as rochas pontiagudas que deram nome ao parque. Itatiaia significa “rocha cheia de pontas”. Em um dos maciços fica o pico das Agulhas Negras, com 2.791 metros de altura. Há quase dez anos, ainda era possível atingi-lo por uma estrada que saía da parte baixa até a parte alta. Por falta de manutenção, ela praticamente ruiu e tanto o caminho quanto os abrigos que o ladeavam estão fechados e abandonados. Agora, para chegar às atrações da parte alta, como o também famoso maciço das Prateleiras, é preciso entrar no parque pela BR-354, estrada que liga a rodovia Presidente Dutra (Rio-São Paulo) à região de Caxambu e São Lourenço (MG). O caminho é duro, mas as belezas do parque compensam.
Eduardo Cotrim, coordenador-executivo voluntário de ecoturismo do parque, não vê problemas em aceitar dinheiro da SOS Parque Nacional do Itatiaia. “Se for de forma honesta, é sempre bem-vindo. Temos que acreditar que o parque vai ser beneficiado”, diz Cotrim (ou Gute, como é conhecido), que há 15 anos lidera um projeto que transforma moradores locais em condutores de visitantes. Gute foi uma das únicas pessoas que trabalham ativamente no parque e que assumiram publicamente o apoio à ong.
Ainda que os recursos venham de fontes lícitas e bem intencionadas, qualquer projeto em parque nacional precisa ter o aval do Ibama e deve passar pela equipe técnica da unidade. Por isso, o ex-chefe Léo Nascimento, que continua atuando como educador ambiental na região, enviou um documento à Ouvidoria do Ibama, com cópia para o Ministério Público Federal, para apurar se os objetivos da ong são cabíveis, uma vez que já se ouviu até falar em desenvolvimento agropecuário como meta da organização. “Não sei no que isso vai dar, mas estou cumprindo meu papel de questionar”, diz o servidor do Ibama. Ele informou ainda que pretende questionar o nome da ong. “SOS Parque Nacional do Itatiaia” é quase uma ofensa ao parque, na visão dos funcionários. “Nós nunca achamos que o nome da nossa ong fosse causar algum desconforto”, justifica a vice-presidente social da entidade.
Todas as vezes que foi questionado sobre a integração do Ibama com a ong, Nilson Neves não hesitou em tentar passar a imagem de uma relação harmoniosa. Mas entregou o clima adverso ao dizer que os servidores não estarem presentes à festa era “problema deles”. Até Gute admite que o erro da ong foi ter sido inábil ao se aproximar do parque. “Eles vieram se impondo”. Dagmar novamente defende a postura da entidade: “Nós só queremos o bem, estamos vendo as dificuldades e parece que o parque não quer ser ajudado”, diz. Não tem problema. Mesmo sem projeto definido, a ong insiste em ajudar à força.
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