Reportagens

De volta ao pó

Quarenta anos depois, pinheiros do Parque da Cidade em Brasília cumprem seu destino original: virar brasa. Nada a lamentar. O cerrado reassume seu lugar.

Carolina Mourão ·
27 de janeiro de 2006 · 18 anos atrás

Seu Domingos da Silva (foto) não se importou com o barulho das motosserras, e indiferente às árvores caídas ao redor tocava o churrasco familiar em plena terça-feira, sob a sombra do último círculo de pinheiros que sobrou no Parque da Cidade, em Brasília. “Se não dava para esperar o fim de semana antes do corte, também não dava para deixar de fazer um último churrasco aqui”.

A operação de corte de 650 pinus quarentões, plantados antes mesmo de a área ser decretada parque, está a cargo da Novacap (Companhia Urbanizadora da Nova Capital), a mesma que plantou a espécie para ser transformada em lenha na década de 60. “O pinus cresce rápido. A finalidade desta madeira era mesmo comercial, lenha para os fornos das padarias, cerâmicas e carvoarias que mantinham aquele projeto de cidade. Mas você vê: o que é do homem, o bicho não come mesmo”, brinca Ozanam Coelho, diretor de parques da Companhia, que está devolvendo espécies nativas para dentro da cidade. “As próprias circunstâncias me dão de volta a oportunidade de replantar o cerrado em Brasília”.

Se o bicho come ou não, o certo é que um fungo ainda desconhecido atacou o tronco dos pinheiros (Pinus elliotti) do parque, moléstia que só foi detectada depois de uma ventania que atingiu 89 km/h no dia 18 de dezembro em Brasília. Desde então os pinheiros ficaram bambas, prestes a cair. Um perigo para os freqüentadores. A pressa da Novacap tem razão de ser: segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), ventos de até 100 km/h devem sacudir novamente as árvores da cidade nos próximos dias.

Segundo Ênio Dutra, secretário da Comparques, todos os pinheiros serão cortados, mas a longo prazo. “Estamos trabalhando agora objetivamente, apenas nas árvores que oferecem risco”.

Mas Ozanam Coelho adianta os planos: “Vamos colocar no lugar dos pinus a quaresmeira rosa e roxa, os ipês branco, roxo e amarelo, o jacarandá vermelho e a fisocalina, que dá umas flores lilazes lindas demais”, orgulha-se o homem que replantou Brasília quando o cerrado veio abaixo para a construção da nova capital. Enquanto continua o plantio, “tarefa que não acaba”, faz também as reposições das árvores velhas e doentes da cidade. “Árvore velha, minha filha, é como gente velha: fica sem o telhado, tem pereba, ameaça cair no chão…”, brinca.

Sobre a falta de sombra nas churrasqueiras, Ozanam responde, sinceramente. “Eu não vou esquentar a minha cabeça com isso. As sombras das quaresmeiras não vão ser algo que eu espero desfrutar, minha filha. Tempo, tempo, tempo…”.

E despediu-se com as mãos no bolso, assoviando o restinho daquela música do Caetano, enquanto o velho crachá de funcionário da Novacap ameaçava voar em um pé de vento que nos pegou pela canela.

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