Reportagens

Política da boa vizinhança

Gado, fogo e caça ameaçam Mata Atlântica no entorno do Parque Nacional do Itatiaia. Direção da unidade inicia campanha para criação de reservas privadas na vizinhança.

Bernardo Camara ·
4 de abril de 2008 · 16 anos atrás

Duas cancelas sempre foram suficientes para controlar o entra e sai de turistas no Parque Nacional do Itatiaia, na Serra da Mantiqueira. Mas um grupo de visitantes tem batido ponto pelos 30 mil hectares protegidos, e não querem saber de passar pela portaria. Sem cerimônia, o gado das propriedades vizinhas à unidade tem insistido em dar uma voltinha nas instalações do mais antigo parque nacional brasileiro, dividindo espaço com a fauna local e chamando atenção para a pressão que os remanescentes florestais têm sofrido no entorno da unidade.

Para constatar a substituição das vastas manchas verdes por largas extensões de pastagem em volta do parque, não é preciso cruzar com bois. Na estrada que leva à entrada da chamada parte baixa, o resultado da especulação imobiliária ao longo dos anos é perceptível. Já de dentro da unidade, basta subir em qualquer mirante para confirmar o estrago que os incêndios periódicos têm feito sobre o que restou da Mata Atlântica.

“É completamente incompatível com uma unidade de conservação ter gado no entorno. As queimadas estão associadas, pois, para renovar a pastagem, eles tacam fogo. E o gado tem vindo se alimentar aqui dentro”, reclama Walter Behr, chefe do PNI, listando ainda a ação de palmiteiros e caçadores como ameaças adicionais à fauna e flora que cercam a UC. “Se não houver ação mais firme, a tendência é que isso avance até entrar no parque”.

Com 70 anos nas costas, o Parna do Itatiaia está pagando o preço pela ousadia de fechar a cerca bem na divisa dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, que não escondem sua fome pela urbanização. O crescimento de cidades que beiram a unidade, como Penedo e Mauá, já faz cócegas na área protegida, e ignora solenemente o que deveria ser a zona de amortecimento. “Essa expansão é uma ameaça ao parque. Tem propriedades em zonas estratégicas onde ainda há florestas”, preocupa-se Behr.

Cinturão verde

Itatiaia não foge à regra quando se diz que 80% do que sobrou da Mata Atlântica estão em mãos privadas. Os remanescentes que margeiam os limites do parque pertencem, em sua maioria, a particulares. Foi a partir dessa constatação que a administração da unidade resolveu difundir entre os donos de terra da região a idéia de transformar seu espaços em Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN), na tentativa de se preservar o cinturão verde.

“Há proprietários com áreas estratégicas. Queremos convencê-los a criar RPPNs porque serão aliados fundamentais, vão frear esse processo de avanço sobre os remanescentes”, explica Behr, ao contar que existem planos de se expandir o parque para garantir que as árvores ao redor continuem de pé. “Com RPPNs, a ampliação não seria necessária. Tendo a zona de amortecimento protegida, temos o parque protegido. Se não há isso, a ameaça é grande”.

Segundo dados levantados pela SOS Mata Atlântica, a primeira UC brasileira está mal das pernas quando o assunto avança sobre as cercas: dos mais de 750 proprietários brasileiros que já levam sua escritura de RPPN debaixo do braço, nenhum deles é vizinho do Itatiaia. “A pressão sobre o meio ambiente é muito forte. Estamos estimulando as pessoas que têm propriedade no entorno do parque a criarem suas reservas pois ajudaria na fiscalização e diminuiria a pressão”, acredita Gustavo Tomzhinski, chefe de fiscalização da unidade.

Deyse Moreira Paulo, diretora-executiva da Associação do Patrimônio Natural do Rio de Janeiro, concorda com Tomzhinski. “É muito mais interessante criar RPPNs no entorno que ampliar os limites do parque, pois ele não vai ter pessoal suficiente para fiscalizar, proteger essa área. É a forma mais barata de preservação para o governo”, argumenta.

Caminho tortuoso

De acordo com Walter Behr, ainda que a devastação corra solta pelas bordas do PNI, há muito proprietário disposto a preservar suas áreas. No último fim de semana, a Aliança pela Mata Atlântica – uma parceria entre as ONGs SOS Mata Atlântica e Conservação Internacional – subiu as ladeiras do parque para um encontro com aproximadamente 30 proprietários locais. O Programa de Incentivo à Criação de RPPNs da Mata Atlântica foi apresentado e os participantes tiraram suas dúvidas.

“Desde 1989 tento criar minha RPPN. Está aqui o documento, amarelado já, para provar”, esticou a mão Eliel de Assis Queiroz, dono de 18 hectares que fazem divisa com o parque. “Na minha primeira tentativa, há quase 20 anos, esbarrei numa baita burocracia”, criticou. A coordenadora do programa, Érika Guimarães, não escondeu que o caminho é por aí mesmo, mas tentou amenizar a desesperança: “Ano passado o Ibama baixou uma instrução normativa estipulando 140 dias para se concluir o processo. Isso já foi um avanço”.

Queiroz conta que seus documentos saíram das gavetas do Ibama em 2006, quando ele se deparou com outro obstáculo. “Os gastos são elevadíssimos. Você tem custos cartoriais, contratação de técnicos para visitar a área, georeferenciamento. Eu teria que desembolsar entre 20 e 25 mil reais. O governo tem que entender que somos trabalhadores comuns, que têm dificuldades”.

Mesmo com os empecilhos, o proprietário diz que vai seguir em frente, “pois toda semana tem visita de caçador e palmiteiro” em suas terras. “Quero ter minha RPPN para desenvolver projetos de
pesquisa científica e de educação ambiental. É preciso ter paciência e persistência”, concluiu.

Bom negócio

Com dados da Associação do Patrimônio Natural nas mãos, Deyse Moreira Paulo assegura que os percalços não têm impedido o aumento de pessoas que pretendem ter suas RPPNs. Se na década de 90 a área protegida por particulares no estado do Rio não passava de 40 hectares, hoje o número já avança sobre 10 mil. “No primeiro momento a gente acha que é muito difícil criar RPPN. Porém, cada vez mais o valor da floresta em pé vai ser traduzido em recursos, o que é um estímulo”, diz.

Para ilustrar o argumento, Deyse conta a experiência em sua própria reserva privada, em Silva Jardim, no Rio de Janeiro. Por meio de manejo sustentável e intercâmbio com proprietários vizinhos, a produção de cachaça e mel vai muito bem em sua propriedade. “Hoje é um bom negócio ter RPPN, nós temos um produto”, assegura, ao acrescentar que o proprietário pode deixar de fora alguns recursos de sua área para explorar com equilíbrio.

Se a isenção do Imposto Territorial Rural e a prioridade na hora de pedir crédito e análise de projetos não é atrativo suficiente para não quer deixar o gado de lado, Érika Guimarães aposta as fichas no ICMS Ecológico para o futuro. Segundo ela, o repasse de recursos direto para unidades de conservação particulares é uma prerrogativa que deve se concretizar em médio prazo. “Os proprietários de RPPN têm feito trabalho heróico usando suas reservas para o turismo, pesquisas científicas e educação ambiental. Nada mais justo que tenham isso reconhecido”, defende.

  • Bernardo Camara

    Bernardo Camara é jornalista formado pela PUC-Rio. Desde 2007 dedica-se a temas ambientais e de direitos humanos. Viveu por 4...

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