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O Sus que deu certo

Espécies exóticas invasoras estão entre os maiores vilões da conservação, mas há casos e contextos em que o resultado pode ser diferente.

10 de junho de 2013 · 11 anos atrás
  • Fernando Fernandez

    Biólogo, PhD em Ecologia pela Durham University (UK). Professor do Departamento de Ecologia da UFRJ, trabalha com Biologia da Conservação.

Porco-monteiro, o invasor que acabou sendo benéfico. Foto: Arnaud Desbiez
Porco-monteiro, o invasor que acabou sendo benéfico. Foto: Arnaud Desbiez

Espécies exóticas invasoras estão entre os maiores vilões da conservação, e há razões de sobra para isso. As invasoras são espécies introduzidas pelo homem em áreas fora de suas distribuições originais, e que conseguem se instalar e se reproduzir com sucesso na nova área. Em um ambiente novo, livres de seus inimigos naturais, algumas delas se tornam muito abundantes e têm impactos devastadores sobre as biotas locais. Este processo tem sido apontado como uma das três maiores causas de extinção de espécies, ao lado de perda de habitats, e de caça e superexploração. O problema é particularmente grave em ilhas, onde invasoras causaram várias centenas de extinções globais de espécies. Em muitas ilhas ao redor do mundo, mesmo nas maiores como a Nova Zelândia ou a ilha metida a continente chamada Austrália, o trabalho de conservação quase se confunde com o controle de exóticas. Aqui no Brasil, as ameaças à biodiversidade são múltiplas e aumentam a cada dia, mas ainda assim o caramujo africano, o pinheiro Pinus elliottii e o bagre africano, entre tantos outros casos, tem causado justificada preocupação.

Talvez você se surpreenda ao saber que uma das mais destrutivas espécies invasoras é o porco doméstico, Sus scrofa. Não se deixe enganar por aquela carinha simpática com nariz de tomada. O porco está na lista da IUCN das cem piores espécies invasoras do mundo. Porcos domésticos “ferais” (isto é, retornados à vida selvagem) causam sérios prejuízos à vegetação e ao solo. Predam de tudo: ovos de aves marinhas e de tartarugas, anfíbios, invertebrados. Transmitem doenças para várias espécies, inclusive a nossa. Além disso, estudos como os de David Steadman mostram que porcos trazidos pelos polinésios estiveram entre os principais responsáveis pela extinção de mais de oitocentas espécies de aves nas ilhas do Pacífico – na maioria espécies que nidificavam no chão e não tinham nenhuma defesa contra mamíferos predadores introduzidos. Como se sabe, então, o Sus é um desastre.

O porco monteiro e seu papel no Pantanal

Segundo Arnaud e colegas, o fato de o porco monteiro ser a espécie preferida protege os grandes mamíferos nativos que coexistem com ele, como a queixada e o cateto

Dados esses antecedentes, foi uma agradável surpresa para mim que Arnaud Desbiez, um biólogo francês radicado no Brasil, e três colaboradores (Alexine Keuroghlian, Ubiratan Piovezan e Richard Bodmer) publicassem em 2011 a ideia de que o porco doméstico introduzido é um dos principais responsáveis pela conservação de várias espécies de grandes mamíferos no Pantanal. O artigo saiu na revista Oryx e foi divulgado na época aqui em O Eco.

O ponto que Arnaud e seus colegas defendem é simples, interessante e importante. No Pantanal, o “porco monteiro” (como lá é conhecido o porco doméstico feral) existe há uns 150 anos, desde que fazendas foram devastadas durante a guerra do Paraguai e os bichos escaparam. Sua carne é altamente apreciada pelos pantaneiros: 93% dos entrevistados a apontaram como sua carne silvestre favorita, enquanto 7% preferiam o queixada (Tayassu pecari) e ninguém falou do cateto (Pecari tajacu), as duas espécies de porcos do mato nativos do Pantanal. Há um costume local de capturar machos de porco monteiro, castrá-los, marcá-los (para identificar a fazenda à qual “pertencem”) e soltá-los para captura posterior. Esses machos, chamados “capados”, tornam-se imensos e fornecem a mais apreciada das carnes. Além disso, os caçadores geralmente evitam matar fêmeas, especialmente fêmeas grávidas, o que permite à população se manter.

Segundo Arnaud e colegas, o fato de o porco monteiro ser a espécie preferida protege os grandes mamíferos nativos que coexistem com ele, como a queixada e o cateto, que em outros lugares sofrem intensa caça e já se tornaram regionalmente extintos em grande parte do Brasil, e raros no restante. Se esta interpretação está correta, o porco monteiro introduzido seria um importante fator para o Pantanal ser a única região do Brasil onde grandes mamíferos ainda são abundantes mesmo fora de Unidades de Conservação de proteção integral.

Um feliz acidente histórico?

Não se consegue evitar a impressão de que funciona bem quase que por um acidente histórico

Como em quase tudo no Pantanal, o equilíbrio é frágil. Arnaud e seus colegas lembram, claro, que os porcos monteiros também tem outros efeitos sobre a biota pantaneira. Afinal, todos os velhos truques que colocaram Sus scrofa na lista dos cem piores invasores ainda estão lá: os bichos destroem a vegetação e o solo, predam pequenos vertebrados, transmitem doenças e por aí vai. Que esses efeitos negativos não sejam mais sérios que os positivos parece se dever a um único fator: justamente que a caça controla a população dos porcos, impedindo que ela chegue a níveis onde os impactos negativos seriam preocupantes. Não se consegue evitar a impressão de que funciona bem quase que por um acidente histórico – como não aconteceu em vários outros lugares onde hoje não há porcos ferais, nem queixadas, nem catetos. Mas funciona. Há um Sus, pelo menos, que funciona.

Há, claro, outro caso importante de introdução de Sus no Brasil, que é o javali. O javali é da mesma espécie que o porco doméstico, Sus scrofa. Na verdade o javali é a forma selvagem a partir da qual o atual porco doméstico foi derivado, através de milhares de anos de domesticação e de seleção artificial para acentuar as características valorizadas por nós. Mas a invasão do javali no sul do Brasil, por exemplo, onde já não há mais queixadas e catetos na maioria das áreas, representa uma situação muito diferente daquela do porco monteiro no Pantanal. Sobretudo, não necessariamente representa um questionamento da malignidade das exóticas. Não é meu objetivo, portanto, discutir o javali aqui.

Reavaliando o papel das invasoras

Há muitos casos, porém, em que não se pode demonstrar que uma exótica esteja causando estragos para a biodiversidade

Será que o porco monteiro no Pantanal é apenas um caso isolado, dentro de um padrão praticamente inflexível de que espécies invasoras provoquem estragos? Já não estou mais tão certo disso. Recentemente uma carta intitulada “não julgue espécies por suas origens” foi publicada na revista Nature por um grupo de ecólogos encabeçado por Mark Davis e incluindo monstros sagrados desta ciência como Michael Rosenzweig e James Brown (não o do soul, o outro, da University of New Mexico, para mim um dos maiores ecólogos do século XX). Esta carta ameaça colocar o caso do porco monteiro como apenas mais um exemplo dentro de um cenário muito maior de reavaliação do papel das espécies invasoras pela Biologia da Conservação.

Davis e colaboradores traçam o histórico dos conceitos de espécies “nativas” (“natives”) e exóticas (“alien”), que foram criados pelo botânico inglês John Henslow em 1835, para ajudar a distinguir a “verdadeira” flora britânica das plantas introduzidas. Porém, os ecólogos só despertaram para a escala e a importância do assunto em 1958, com a publicação do clássico “A ecologia das invasões por animais e plantas”, de Elton (não Elton John, o outro, ainda mais antigo, Charles Elton, um dos grandes pioneiros da ecologia). Nas décadas seguintes, com o aumento das informações sobre os impactos de exóticas, foi se firmando entre cientistas, conservacionistas e muito do público em geral uma visão de que espécies invasoras são ruins e devem ser evitadas e erradicadas a qualquer custo.

Há muitos casos, porém, em que não se pode demonstrar que uma exótica esteja causando estragos para a biodiversidade, e outros em que elas podem na verdade estar tendo um efeito positivo. Um exemplo citado na carta é o do “tamarisk”, uma planta africana e eurasiana que foi introduzida em regiões áridas dos EUA onde hoje é um componente importante do habitat, sendo inclusive a planta preferida para a reprodução de um pássaro nativo e ameaçado, o “willow flycatcher”. Assim sendo, os imensos esforços dos americanos para erradicar o tamarisk podem na verdade ser contraproducentes para a conservação.

Outro ponto interessante é que atualmente o mundo biológico vem sofrendo rápidas e intensas transformações, inclusive por causa das mudanças climáticas globais, e por isso o papel das espécies nos ecossistemas muda ao longo do tempo. Por um lado isso quer dizer que uma invasora que hoje é inofensiva pode vir a fazer estragos no futuro, mas por outro lado isso também vale para qualquer nativa. Por exemplo, hoje o inseto que mais mata árvores na América do Norte é o besouro nativo Dendroctonus ponderosae, cuja dinâmica populacional foi alterada pelas mudanças climáticas, com efeitos desastrosos para a mesma floresta que sempre foi seu habitat natural. A distinção entre nativas e exóticas, então, fica cada dia menos nítida.

Podemos então baixar a guarda com as invasoras?

Então as espécies invasoras deixaram de ser consideradas um problema sério? Não, não estou de modo algum dizendo isso. A nova visão delas que vem ganhando terreno na Biologia da Conservação não apaga a história, nem a experiência cotidiana, de que as invasoras têm impactos efeitos negativos em muitíssimos casos. Cabe notar que os efeitos de espécies introduzidas são muito difíceis de predizer. É fácil elas criarem novas interações ecológicas imprevistas e indesejadas, com efeitos desastrosos para a diversidade.

Não estou dizendo, então, que devemos jogar fora cuidados que continuam fazendo todo o sentido do mundo. Mas talvez precisemos de estratégias de manejo mais flexíveis para lidar com o problema. Uma política do tipo “se é exótica, tire” pode ser prática para o manejo cotidiano de áreas naturais, porque fornece uma diretriz simples e direta, e porque requer relativamente pouca informação além da identificação das espécies. Mas ao mesmo tempo uma política assim pode ser desperdiçadora de valiosos recursos, ou até contraproducente. Em minha opinião, uma política mais adequada seria mais ou menos assim. Evite a introdução de novas exóticas, porque seus efeitos são imprevisíveis. Se a espécie introduzida já está lá como invasora, estude a situação e entenda que efeitos ela tem no ecossistema. Se ela tiver efeitos nulos ou positivos, deixe-a lá e use seus recursos para coisa melhor. Se ela estiver fazendo estrago, aí sim, erradique se for possível, ou controle se não for.

Uma política assim, claro, precisa ser orientada o tempo todo por um bom entendimento dos processos naturais – ou seja, por boa ciência. Mas quase qualquer outra coisa em conservação também precisa. É a ciência que tem nos permitido entender que o papel das espécies exóticas invasoras é bem mais complexo do que pensávamos algumas décadas atrás. Esse alargamento da nossa perspectiva não deixa de ser uma boa notícia. Depois de tantos anos vendo o estrago que a maioria delas causa, é animador pensar que espécies invasoras possam também estar contribuindo para a conservação – nem que seja só um porquinho.

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Comentários 1

  1. Uma espécie exótica pode realmente auxiliar em alguns serviços ecossistêmicos, mas no caso do gado (bovino) a floresta é degradada e o pisoteio pode causar perdas importantes na biota local. Não houve coevolução recente da nossa flora e da nossa fauna com animais tão pesados assim. O assunto merece aprofundamento.