Reportagens

Os últimos naturalistas

A pintura da família Demonte resiste ao tempo e às novas tecnologias. Há quase 50 anos, eles aliam ciência e arte para registrar a fauna e a flora brasileiras.

Francisco Luiz Noel ·
20 de outubro de 2004 · 20 anos atrás

Dos beija-flores estudados pelo ambientalista Augusto Ruschi por décadas às onças-pintadas que resistem nas florestas brasileiras. Da ararinha-azul ameaçada de extinção no Nordeste ao desengonçado colhereiro, ave pernalta de rios como o São Francisco. Das multicoloridas borboletas da Mata Atlântica às temidas piranhas das águas do Pantanal.

Em quase 50 anos de devoção à natureza, a família Demonte já retratou incontáveis espécies da fauna e da flora brasileiras. E seguem de pincéis em punho, desafiando a apregoada fidelidade do registro fotográfico – ilusória, garantem – e as facilidades da fotografia digital.

Referência da pintura naturalista no Brasil, os Demonte são reverenciados mundo afora por estudiosos das ciências da natureza e amantes da arte de perseguir a reprodução realista do mundo natural. Por muito tempo, foram conhecidos como irmãos Demonte – Etienne, Rosália e Yvonne. Ao trio de pintores foram agregados, no fim da década de 80, Ludmyla, filha de Rosália, e seus primos André e Rodrigo, filhos de Etienne, que morreu em maio deste ano, aos 73 anos. O grupo passou a se auto-denominar família Demonte.

“Nossa pintura é informativa, documentarista. Mas meu pai dizia que a pintura naturalista deve transcender os limites da mera documentação”, diz André. “O naturalismo dos Demonte é, ao mesmo tempo, ciência e arte”. Rosália, nascida em 1932, ilustra essa convergência com o testemunho da reação do público às obras da família durante exposição itinerante do Sesc que rodou o país por dois anos. “As crianças e adolescentes se emocionavam e aprendiam com as informações transmitidas pelos quadros”, ela conta.

Em favor da pintura naturalista, os Demonte garantem que ela pode ser mais fiel à realidade do que o registro fotográfico, o que justifica a sobrevivência da parceria entre cientistas da natureza e pintores. “A pintura é preferida, por exemplo, pelos botânicos, porque permite selecionar elementos, destacá-los e reproduzir formas e cores com fidelidade, dentro da escala. A fotografia tem distorções de formas, cores e tamanhos. Além do mais, a pintura permite dar destaque a detalhes importantes para o reconhecimento da espécie”, compara Ludmyla.

O trabalho desses pintores que mantêm vivo o naturalismo em pleno século XXI filia-se a uma tradição que vem dos tempos em que o mercantilismo europeu lançou-se ao mar em busca de novos mundos. Aos desenhistas e pintores, dublês de artistas e naturalistas, cabia o desafio de reproduzir a natureza exótica ao olhar da Europa. Um dos primeiros artistas a aportar no Brasil, no século XVI, foi o alemão Hans Staden. Até o século XIX, uma multidão de naturalistas passou por aqui – do holandês Albert Eckhout ao francês Jean-Baptiste Debret.

Rosália conta que foi folheando livros desses mestres da pintura naturalista que tudo começou, na década de 40, durante a infância vivida entre o verde das árvores e o azul do mar da praia de São Francisco, em Niterói (Grande Rio). Em meio à natureza ainda intocada pela onda do progresso, que transformaria mais tarde o lugar em bairro nobre, Etienne, Rosália e Yvonne fascinavam-se com as figuras dos livros ilustrados da biblioteca do pai, um gerente de companhia de seguros que cultivava o gosto pela arte e a natureza.

Influências marcantes foram o inglês John Goud (1804-1881), o francês Jean Jacques Audubon (1785-1851) e o norte-americano Walter Weber (1906-1979). Gould, a quem se atribui a apresentação do periquito australiano ao resto do mundo, foi um dos grandes pintores de pássaros da história. Audubon não é menos famoso, tendo se notabilizado pela pintura de aves da América do Norte. Weber brilhou, dos anos 40 aos 50, como ilustrador de pássaros na National Geographic, antes de a revista se render em definitivo aos cliques da fotografia.

Autodidata, a primeira geração dos Demonte manipula lápis, pincéis e tintas desde aquela época. Rosália conta: “Etienne ficou com as aves, eu escolhi os mamíferos e Yvonne, os insetos”. Fiéis por intuição à prática naturalista, o trio adestrou-se no uso do guache e da aquarela, combinados nas pinturas para reproduzir texturas, cores e contrastes observados na natureza. “O guache é opaco, mais forte. A aquarela é translúcida e tem mais delicadeza. É usada, por exemplo, para pintar pétalas de flores”, explica Yvonne, nascida em 1930.

Os primeiros trabalhos profissionais datam dos anos 60. De início, eram ilustrações de espécies da fauna e da flora brasileiras para enciclopédias de editoras como a Bloch. A obra autoral alçou vôo a partir de 1966, com exposições que o trio Etienne, Yvonne e Rosália fez em Petrópolis, Rio de Janeiro e Brasília. Nas telas, azulões e tiês-sangue, quatis, insetos, bromélias e quaresmeiras. Na época, pintavam também dinossauros, incluindo o titanossauro, um dos maiores da América do Sul, traduzindo em imagens as pesquisas de paleontólogos pioneiros como Josué Camargo Mendes e Carlos de Paula Couto.

O grande marco da trajetória dos irmãos foi a parceria com Augusto Ruschi. Pintando os beija-flores que o ornitólogo estudava havia décadas, os Demonte ganharam notoriedade e tiveram abertas as portas para o reconhecimento no exterior.

Afinal, as imagens desses pequenos pássaros pesquisados por Ruschi não provocariam o mesmo fascínio sem a delicadeza dos pincéis de Etienne Demonte nas pranchas que ilustram os livros do ornitólogo, como em Beija-Flores do Brasil. Eles parecem prestes a saltar do papel e bater asas, tamanho o realismo das pinturas. Dick Blower dá um testemunho poético: “Um provérbio chinês diz que, para pintar um bambu, é preciso se transformar num bambu. Etienne não sabia fazer beija-flores antes: eles saiam pesados. Com Ruschi, aprendeu, porque passou a se sentir um beija-flor.”

Yvonne conta que não era fácil o relacionamento com Ruschi, adepto de disciplina espartana em seu refúgio ecológico, no município capixaba de Santa Teresa. Às vezes genioso e sempre perfeccionista, ele tinha o hábito de medir à régua os beija-flores pintados, para ver se tinham os exatos milímetros dos reais. Muito trabalho foi feito e refeito à exaustão até chegar à perfeição sem retoques. “Ruschi aparecia com um pedacinho de tijolo e dizia: a patinha do beija-flor é igualzinho a essa cor”, recorda Yvonne, autora de desenhos a bico-de-pena para outro livro de Ruschi, Aves do Brasil.

A entrada dos Demonte no circuito internacional de museus, galerias e coleções ocorre na década de 80. Em 84, participam de exposição sobre a natureza tropical no Real Jardim Botânico de Madri e em mais oito cidades espanholas. Em 85, começam a conquista dos EUA, com coletiva no Hunt Institut for Botanical Documentation, em Pittsburgh. No ano seguinte, o reconhecimento definitivo: mostras no Wave Hill, em Nova Iorque, e no Smithsonian Institution – National Museum of Natural History, em Washington, maior museu de história natural do mundo.

As exposições nos EUA e na Europa passam a se suceder, incontáveis, assim como no Brasil. A obra dos Demonte entra na mira de colecionadores nacionais e estrangeiros, com quadros leiloados pela famosa casa Christie’s, de Londres. De leitores infantis da revista da National Geographic Society, os irmãos passam, adultos, a tema de reportagem da sociedade: em 86, o programa americano Explorer promove expedição com os Demonte à área inundada pelo Rio São Francisco no sudoeste da Bahia. O filme Brazil Wildlife in Watercolour, exibido nos EUA e na Europa, mostra os Demonte em plena atividade na natureza.

É nesta época que os jovens Demonte começam a demonstrar que herdaram o talento do trio original. Ludmyla, que desde a infância convivia com o trabalho da mãe e dos tios, abandonou a faculdade de Geografia na UFRJ para dedicar-se à arte, começando por ajudar Rosália na ilustração de livros de divulgação científica. Fez exposições individuais e passou a dividir o ateliê com a mãe e Ivonne, em meio ao verde do bairro Cremerie, em Petrópolis. A irmã, Chistianne, bióloga, se junta ao pai, Dick, no apoio ao trabalho artístico do clã.

André e o irmão, Rodrigo, seguem o mesmo caminho do pai. No antigo ateliê de Etienne, no bairro de Carangola, em Petrópolis (RJ), André pinta, com queda natural por aves, e dá aulas. Rodrigo é o único que mora no Rio. “A pintura é atávica nos Demonte. Nós, os novos, tivemos a sorte de nascer num ambiente artístico já formado”, diz André. Seja com as onças-pintadas de Ludmyla, seja com as araras com borboletas amarelas de André, a nova geração é mais uma prova de que a pintura dos Demonte é fiel à natureza: deu cria, para perpetuação da espécie dos pintores naturalistas.

Leia também

Reportagens
4 de outubro de 2024

Candidatos nas campeãs de desmatamento na Amazônia acumulam irregularidades ambientais

Levantamento exclusivo mostra que 63 candidatos-fazendeiros têm problemas em suas propriedades. Em São Félix do Xingu (PA), prefeito condenado por mentir para atrapalhar desintrusão de terra indígena tenta se reeleger

Colunas
4 de outubro de 2024

Amazônia branca: sem proteger a Antártida, adeus clima

Itamaraty precisa fortalecer o papel do Brasil na proteção da Antártida e mandar delegação qualificada para a reunião da Convenção para os Recursos Vivos Marinhos Antárticos

Salada Verde
4 de outubro de 2024

Extrema direita pode levar a Amazônia ao ponto de não retorno, dizem pesquisadores

Artigo assinado por 14 pesquisadores de diferentes instituições alerta para perigo da eleição de políticos de extrema direita em municípios com grande desmatamento

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Comentários 1

  1. Mario de Amaral diz:

    Há anos sou apaixonado por uma série de beija flores, em azul, dispostos na clinica médica, em Barra Bonita, onde minha filha Irene, durante muito tempo, fez parte do corpo médico, juntamente com Dr. Dimas, Dra. Mara e Dr. Jorge