Ainda sem uma lei federal que equilibre conservação e crescimento econômico, o destino do Pantanal está ancorado em regras estaduais. Fontes contaram suas expectativas a ((o)eco sobre a lei para o bioma que o Mato Grosso do Sul pode aprovar este ano, como fez em 2022 o Mato Grosso.
A legislação florestal de 2012 definiu o Pantanal como uma “área de uso restrito” cuja uma exploração deve ser “ecologicamente sustentável” e baseada em estudos de “órgãos oficiais de pesquisa”. Passada mais de uma década, o bioma ainda não recebeu um regramento federal, como tem a Mata Atlântica.
A demora levou os estados pantaneiros a traçar suas regras para o uso da planície alagável. Em julho de 2022, uma lei aprovada no Mato Grosso foi taxada por ongs e cientistas como uma “autorização legal” para a degradação do bioma, um grande abrigo sul-americano de biodiversidade.
Entre outros pontos, o texto permite o uso intensivo ou em larga escala de Áreas de Preservação Permanente (APPs), o cultivo de pastos exóticos para gado em até 40% de imóveis rurais e autoriza atividades de “interesse social” na planície alagável.
Já no Mato Grosso do Sul, um decreto de 2015 abriu até 60% das fazendas pantaneiras para pastos não nativos e lavouras. Isso bombou o desmate e fez o estado suspender todas as licenças de supressão, em agosto. Uma proposta de lei do bioma deve chegar à Assembleia Legislativa até meados de outubro.
A norma afetará ⅔ do Pantanal brasileiro e o destino do bioma mais preservado do país, com 80% de vegetação natural. “A hora de preservar o Pantanal é agora”, defende Gustavo Figueirôa, coordenador de Comunicação da ong SOS Pantanal, parte do Observatório do Pantanal.
O coletivo reúne mais de 40 entidades civis e de pesquisa do Brasil, da Bolívia e do Paraguai atuando juntas para conservar e desenvolver com sustentabilidade a Bacia Hidrográfica do Alto Paraguai, cujos 368 mil Km² são similares às áreas do Mato Grosso do Sul ou da Alemanha.
Caminho das pedras
Para Figueirôa, cientistas, sociedade civil e “quem está no território” não podem ser escanteados no debate da lei estadual que, inclusive, deveria trazer meios econômicos, fiscais ou em créditos para compensar fazendas que mantêm vegetação nativa acima dos índices legais.
“O desafio é encontrar um modelo que mantenha o Pantanal e o produtor pantaneiro. Há uma oportunidade para evitar um desastre tal qual em biomas como a Mata Atlântica e o Cerrado [que ainda enfrentam perdas elevadas de vegetação natural]”, completa.
Deputado sul-mato-grossense pelo PT, Pedro Kemp espera uma legislação firme para conservar o Pantanal e que reforce a fiscalização sobre o cumprimento das normas ambientais. “Mas, temos um governo identificado com o agronegócio e muitas vezes leniente com o desrespeito à lei”, diz.
Ao mesmo tempo, o parlamentar avalia que não há mais espaço para retrocessos legais frente às alarmantes taxas de desmate, do avanço da soja e do assoreamento de rios pantaneiros, como o Taquari. “Isso chama a atenção e preocupa toda a sociedade”, destaca.
Diretor-executivo da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), Lucas Galvan espera que uma lei estadual assegure que os produtores pantaneiros continuem com suas atividades agropecuárias “de maneira segura e sustentável”.
“Entendemos que a ideia de se discutir um projeto de lei estadual é bem-vinda, desde que tenha como fundamento os conceitos e dados técnicos, econômicos, sociais e ambientais, à exemplo do que foi discutido à época do decreto de 2015”, descreve.
Quando chegar à Assembleia Legislativa, a proposta para o Pantanal deve ser influenciada por novos estudos, fortes embates políticos e audiências públicas com os setores interessados em sua aprovação. “Há pressão do agro para abrandar a legislação”, aponta Pedro Kemp (PT-MS).
“Caso a Assembleia Legislativa aprove uma legislação muito permissiva para o uso econômico convencional do Pantanal, uma proposta de regulamentação federal deve ser retomada. Não podemos mais brincar com a questão ambiental”, descreve o parlamentar.
Em nota publicada em março deste ano, a Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa) destaca que as legislações em vigor nos dois estados pantaneiros deixam muito a desejar quanto à proteção do Pantanal.
“Tais normas criam regimes jurídicos diferentes para uma mesma realidade ambiental e apresentam padrões protetivos muitos inferiores aos necessários à preservação do Pantanal, conforme exige a Constituição da República e a Lei Federal nº 12.651/2012”, descreve a análise.
Procurado por ((o))eco, o Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul (Imasul) não se pronunciou até a publicação desta reportagem quanto à tramitação do projeto legislativo para o Pantanal.
Polêmica decretada
O decreto de 2015 assinado pelo então governador Reinaldo Azambuja (PSDB) permitia a supressão em propriedades rurais na planície pantaneira de 60% da vegetação nativa não arbórea, como pastos naturais, e da metade da vegetação nativa arbórea, com árvores.
“O decreto não garantia a proteção do Pantanal e dava margem para licenças de desmatamento questionáveis”, analisa o parlamentar estadual Pedro Kemp (PT-MS), já em seu quarto mandato na Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul.
“Os critérios de supressão eram previstos pelo então decreto, portanto as supressões aconteceram conforme o regramento e fiscalização do órgão ambiental estadual, sendo elas totalmente legais e regulares”, avalia Lucas Galvan, diretor-executivo da Famasul.
Todavia, a regra fez o estado responder por 90% das perdas de vegetação nativa do Pantanal, desde 2019. As taxas fizeram o governo se adiantar a uma possível resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) para o bioma e suspender as licenças para supressão de vegetação.
A escalada da devastação também gerou um inquérito do Ministério Público Estadual. Segundo o órgão, o decreto de 2015 foi ancorado num estudo encomendado após a Embrapa Pantanal afirmar que no máximo 35% dos imóveis poderiam ser convertidos para o agronegócio.
O estudo foi pago pela Famasul, teve recursos financeiros gerenciados pela Fundação de Estudos Agrários Luiz de Queiroz (FEALQ) e foi coordenado por Sérgio De Zen, professor associado da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (ESALQ), da Universidade de São Paulo (USP).
Mídias pantaneiras apontam que o trabalho foi executado por R$ 94,2 mil e que seus resultados e proposições não representam o posicionamento oficial da ESALQ. Procurada por ((o))eco, a Assessoria de Imprensa da instituição não desmentiu essas informações.
Cinco anos após a publicação do decreto pantaneiro, de janeiro de 2020 a novembro de 2022, De Zen assessorou Tereza Cristina, então ministra da Agricultura de Jair Bolsonaro. Tentamos contato com ele pela assessoria de imprensa da ESALQ, por telefone e email, mas ainda não obtivemos retorno.
Partilha pantaneira
O encolhimento dos imóveis rurais, de por volta de 10 mil ha para cerca da metade disso, seria um dos motivos para abrir alas à expansão legal da área produtiva no Pantanal. Isso seria imprescindível à pecuária extensiva no bioma, afirma a Famasul.
“Somente com a supressão vegetal é possível alcançar índices produtivos que garantam a sustentabilidade econômica e social das propriedades rurais, que são a principal fonte de emprego e renda para a região”, assegura o diretor-executivo da entidade, Lucas Galvan.
Tal situação foi analisada num trabalho editado em agosto na revista Conservation Science and Practice. Conforme seu principal autor, Rafael Chiaravalloti, professor da University College em Londres (Inglaterra), o manejo tradicional do gado no bioma perde força.
“Fazendas têm sido divididas entre familiares, vendidas e desmatadas. Sem um aumento da produtividade haverá mais supressão da vegetação nativa. Ao mesmo tempo, é preciso seguir usando o Pantanal de forma sustentável”, avalia o cientista.
O estudo aponta que a pecuária ocupa cerca de 90% do bioma, ou 140 mil km2. Nessa área há mais de 3,8 milhões de cabeças de gado. Por volta de um milhão são comercializadas ao ano. Essa economia secular manteve os traços naturais do Pantanal. Mas, sobre ela pairam ameaças.
Obras de infraestrutura como a hidrovia Paraguai-Paraná, a eliminação da vegetação nativa, novas economias e a crise do clima podem dar novas feições ao Pantanal, romper com seus ciclos de cheias e vazantes e fazer do bioma um grande palco para pastos e lavouras exóticos.
“Tudo isso coloca em xeque o modelo histórico de pecuária alinhado aos ciclos naturais do bioma. Também pode matar o pantaneiro histórico, detentor dessa cultura arraigada à natureza regional”, avalia Rafael Chiaravalloti.
Tais impactos apontam ao projeto de lei do Mato Grosso do Sul como um divisor de águas para o futuro do Pantanal, avalia o deputado Pedro Kemp (PT-MS). “Não somos contra o desenvolvimento, mas a legislação precisará respeitar as realidades socioambientais do bioma”, pede.
“Quem compra terras no Pantanal tem que saber que está comprando numa área sensível. Defendemos atividades como a pecuária extensiva histórica, o turismo e outras economias menos agressivas ao bioma”, acrescenta o parlamentar.
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