Informações obtidas por ((o))eco apontam que o país não endureceu a vigilância sanitária do comércio global de animais na pandemia de Covid-19. Os negócios são autorizados por uma convenção sobre espécies em risco de extinção. As inspeções são sobretudo visuais e de documentos. Testes de laboratório são exceções.
A pandemia de Covid-19 já matou estimados 695,6 mil brasileiros, cerca de 10% das 6.68 milhões de fatalidades globais. Como a ciência aponta que a zoonose chegou às pessoas pelo contato ou consumo de animais selvagens, o comércio criminoso e legalizado de espécies aumenta as chances de contágios.
Para o biólogo Neil DCruze, chefe de Pesquisa e Bem-Estar Animal na ong Proteção Animal Mundial (WPA, sigla em Inglês), é necessário aumentar a vigilância sanitária sobre esses negócios para minimizar os elevados riscos globais de transmissão e do surgimento de doenças.
“Mesmo assim, você sempre terá uma fusão de novos patógenos [causadores de doenças], que nem a melhor vigilância do mundo poderá necessariamente captar. Igualmente há o problema de animais assintomáticos [sem sinais de doenças] sendo negociados”, ressaltou por videochamada desde Londres (Inglaterra).
Dados públicos analisados por ((o))eco mostram que o Brasil importou e exportou 485 mil vertebrados vivos, peles, carnes e outras partes de animais apenas nos dois primeiros anos de pandemia, entre março do ano passado e o mesmo mês de 2020, quando a OMS (Organização Mundial da Saúde) reconheceu o alcance da Covid-19.
No período, também foram comercializadas 22 toneladas de pescado, sobretudo do pirarucu, poderoso peixe de águas amazônicas. Com uma média mensal de 20 mil animais vivos ou frações negociadas, mais de 700 mil itens entraram e saíram do país até a publicação da reportagem.
Esse fluxo é autorizado pela Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (Cites). Assinado pelo Brasil em 1975, o acordo permite negócios globais estimados em US$ 220 bilhões anuais (cerca de R$ 1,1 trilhão) com quase 6 mil animais e 33 mil plantas e seus derivados.
Apesar da movimentação comercial ampliar os riscos de transmissões de doenças, informações obtidas pela reportagem via Lei de Acesso à Informação mostram que a vigilância sanitária sobre espécimes e partes que entram e saem do país por aeroportos e portos não foi endurecida na pandemia.
Responsável pelos critérios comerciais de saúde animal, o Ministério da Agricultura afirmou seguir regras sanitárias nacionais e internacionais e que as importações são inspecionadas com documentos e de forma visual para “identificar sinais e sintomas evidentes de doenças infectocontagiosas e presença evidente de parasitos”.
O órgão citou que “eventualmente pode haver colheita para a realização de testes diagnósticos no ponto de ingresso no país”. Informou, ainda, que houve “facilitações e simplificações de procedimentos de importação […] apenas para cães e gatos”, mas esses não dependem de autorização da Cites.
O Ministério da Agricultura não atendeu nosso pedido de entrevista. Sua Assessoria de Imprensa informou que os critérios de controle sanitário são públicos, que a maioria das espécies tem requisitos de importação definidos no âmbito do Mercosul e que “não há intenção de alteração das exigências de saúde animal este ano”.
Testar é preciso
Doutor em Biologia Evolutiva pela Universidade de Massachusetts (Estados Unidos), Daniel Lahr avalia que o comércio autorizado pela Cites ainda não gera preocupações adicionais sobre questões sanitárias, inclusive porque não há estudos sobre a possível disseminação de patógenos por esses negócios.
“As contaminações por fontes ilegais, como o tráfico, recebem mais atenção acadêmica e de governos porque não passam por nenhum controle sanitário”, comenta o professor no Departamento de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP).
Ao mesmo tempo, ele lembra que inclusive espécies legalmente comercializadas estão conectadas a enfermidades conhecidas, como a própria Covid-19, “um vírus com capacidade de disseminação e de mutação sem precedentes”.
“O controle sanitário da saída e entrada [de espécimes] depende das regras e capacidade de cada país. Mas felinos e primatas contraem Covid-19, enquanto peixes, plantas e outras espécies legalmente negociadas podem portar uma série de doenças. Por quê não testá-los nas importações e exportações?”, questiona Lahr.
O cientista alerta igualmente que a intensa movimentação global de cargas e de pessoas ameaça especialmente espécies selvagens de plantas e de animais pela disseminação de doenças e de espécies invasoras. “97% das doenças causadas por espécies invasoras atacam plantas nos Estados Unidos”, ressalta Lahr.
A síndrome do nariz branco e a quitridiomicose são causadas por fungos vindos de outras regiões do planeta e devastam, respectivamente, populações nativas de morcegos na América do Norte e de anfíbios em inúmeros países, inclusive na Caatinga e Mata Atlântica brasileiras.
“Precisamos de mais e melhores estruturas para lidar com esses riscos, sobretudo em países como o Brasil, detentores de imensa variedade de seres vivos suscetíveis à contaminação”, recomenda o professor da USP.
Animais mundializados
A análise mostra que as compras e vendas via Cites envolveram sobretudo Estados Unidos, Filipinas, México, Canadá, Bolívia, Portugal e Chile, mas em menores quantidades também países como China, Malásia, Indonésia, Vietnã, Micronésia, Cingapura e Tonga – um reino distribuído em centenas de ilhas no Pacífico Sul.
Os animais ou partes exportadas devem vir de criadouros ou da captura controlada na natureza. “Há diferentes origens e finalidades para o comércio via Cites, para abastecer consumidores, indústrias ou pesquisas”, diz Neil DCruze, da Proteção Animal Mundial.
Animais vivos somaram 5% das vendas externas, sobretudo do jabuti-piranga (Chelonoidis carbonaria), vendido como pet, e 35% das importações, especialmente de tilápia-do-nilo, salmão e ovos de truta-arco-íris, para criação em cativeiro ou consumo direto.
Entre as espécies mais exportadas estão o pirarucu e o jacaré-do-pantanal. Suas peles são bastante usadas em botas, cintos e outros itens nos Estados Unidos e México, onde substituem o couro do pangolim, parente asiático dos tamanduás e tatus sob alto risco de extinção, cujo comércio global foi vetado pela Cites em 2017.
Já as compras, envolveram igualmente peles de doninha, raposa-vermelha e do ártico, de Estados Unidos, Canadá, Itália, Suíça e Portugal. Elas servem a casacos e outros itens de luxo. O mesmo mercado importa peles de jacarés norte-americanos e de píton – uma cobra originária da Ásia e África. Ossos de girafas são usados em cabos de facas.
Além dos riscos de proliferação de doenças, mesmo que reduzido em relação aos do tráfico, o comércio viabilizado pela Cites é criticado por prejudicar os direitos dos animais e por supostamente não trazer benefícios reais à conservação.
Neil DCruze, da Proteção Animal Mundial, afirma que desde a criação da Cites, em 1975, o conhecimento científico comprovou que a grande maioria dos animais é capaz de sentir dor, alegria, angústia e medo. Até mesmo répteis, peixes, insetos e outros invertebrados.
“Há questões morais e de bem-estar animal envolvidas quando levamos animais sencientes para o cativeiro, comércio ou abate”, destaca o biólogo. “Também estamos compreendendo cada vez mais os laços entre seu bem-estar e saúde, pois animais estressados e mal tratados transmitem mais doenças”, diz DCruze.
O pesquisador reconhece que a Cites é o instrumento internacional mais importante para regular e documentar o comércio internacional de espécies. “Mas como qualquer tratado, ele só é eficaz se for bem implantado pelos países signatários, e isso nem sempre é consistente”, ressalta.
Segundo o chefe de Pesquisa e Bem-Estar Animal na Proteção Animal Mundial, a lucratividade é um forte argumento para a manutenção do comércio via Cites, mas é preciso pesar os efeitos positivos reais do acordo para a conservação da vida selvagem planetária.
Espécies listadas na Cites têm maior ou menor restrição comercial. Outros animais podem ser explorados quase livremente. Além disso, a inclusão no acordo depende de pesquisas e informações confiáveis e caras. “Assim, basicamente o ônus recai no conservacionista ou na fauna silvestre”, destaca DCruze.
“Então a pergunta é: a Cites está tendo um papel importante? Sim, é melhor do que nada. Mas apesar dos benefícios financeiros de curto prazo, é preciso avaliar impactos negativos de longo prazo na biodiversidade, sempre deixados em segundo plano”, arremata o biólogo.
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