Reportagens

Quase dois anos depois de oficializada, Universidade do Mar não saiu do papel

Sopro de esperança para o enfrentamento dos problemas socioambientais da Baía de Guanabara, proposta apoiada por mais de 100 instituições aguarda decisão governamental

Elizabeth Oliveira ·
15 de fevereiro de 2024

Resultado de uma coalizão entre ciência e sociedade, com um olhar voltado para o enfrentamento de problemas socioambientais da Baía de Guanabara e com soluções construídas participativamente, a partir de suas potencialidades culturais, ecológicas e socioeconômicas, a Universidade do Mar (Unimar) ainda não saiu do papel, mesmo tendo sido oficializada em 8 de março de 2022, como um Programa de Extensão da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), sob a coordenação da Faculdade de Oceanografia (Faoc). 

Um dos obstáculos à alavancada acadêmica da Unimar envolve a cessão de uso da Ilha do Brocoió, residência governamental desativada em Paquetá. No local, foi planejada a instalação de um centro de monitoramento de vulnerabilidade socioambiental da maior e mais degradada baía do estado do Rio de Janeiro. Organizações da sociedade civil cobram respostas sobre esse compromisso não cumprido, prestes a completar dois anos. 

“A proposta é transformar o espaço numa sentinela para toda a Baía de Guanabara”, afirmou o professor Marcos Bastos, diretor da Faoc, em notícia publicada no site da UERJ em abril de 2022. Na ocasião, foi ressaltada a importância da localização do centro de monitoramento, em área de “refúgio para os botos cinza, símbolo ecológico do Rio de Janeiro e espécie ameaçada de extinção”. 

Além disso, foi destacado que a “escolha da ilha para a implantação do programa se deve ainda ao fato de ser um dos locais mais preservados do ecossistema da baía e abranger a Zona de Amortecimento da Área de Proteção Ambiental (APA) de Guapimirim e a Estação Ecológica (Esec) da Guanabara, Unidades de Conservação da Natureza (UCs) que compreendem os municípios de Magé, Guapimirim, Itaboraí e São Gonçalo”. Ainda de acordo com informações divulgadas pela UERJ, em maio de 2021 foi realizada uma visita técnica à Ilha de Brocoió, integrada por inúmeras representações governamentais, dentre as quais, a Secretaria de Estado da Casa Civil (SECC), gestora do espaço.  

Em entrevista a ((o))eco, em junho de 2021, o professor Marcos Bastos havia destacado a importância das ações em parceria da Unimar: “As soluções que serão buscadas, a partir dessa iniciativa de união entre ciência e sociedade que se insere na proposta da Universidade do Mar, vão desde o estabelecimento de inovação, adequação e continuidade nos protocolos de monitoramento, às ações educacionais e de fomento em consonância com as vulnerabilidades encontradas no âmbito deste território”.

“Em plena Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável, o estado do Rio de Janeiro está perdendo uma grande oportunidade para solucionar problemas da Baía de Guanabara, a partir da Unimar e de todas as potencialidades que envolvem mais de 100 instituições apoiadoras desta iniciativa inovadora de caráter multidisciplinar e interinstitucional”, afirma o ambientalista Sérgio Ricardo de Lima, cofundador do Movimento Baía Viva e entusiasta da Universidade do Mar, proposta que ajudou a construir pela organização que representa, conjuntamente com a UERJ e a Associação dos Moradores de Paquetá (Morena).

Dos primeiros passos da capacitação até a formatura, em dezembro, com o barco testado nas águas da Baía de Guanabara. Crédito: Projeto de Carpintaria Naval Artesanal/Divulgação.

Diante do impasse, parceiros desenvolvem capacitação em estaleiro-escola

“Enquanto não tem Brocoió, a gente resolveu implantar a Universidade do Mar no estaleiro-escola na Ilha do Fundão, em um hangar gigantesco. Captamos um recurso do Ministério Público Federal, no ano passado, de uma medida compensatória e formamos em dezembro a primeira turma de 40 alunos, oriundos de comunidades pesqueiras de oito municípios do entorno da Baía de Guanabara”, afirma Lima. Ele explica que os estudantes construíram um barco pelo curso de Aprendiz da Carpintaria Naval Artesanal. 

No final de fevereiro serão iniciadas atividades pedagógicas com a segunda turma, tendo como objetivos principais a construção de duas embarcações e a capacitação de estudantes para a revitalização desse ofício. “São embarcações apropriadas para a pesca artesanal na Baía de Guanabara e não são de custo elevado”, informa o ambientalista. Nesse projeto de qualificação técnica do estaleiro-escola, Lima conta que coordena a disciplina de educação ambiental de base comunitária, um curso de cinco meses que também apoia os cursistas com alojamento e alimentação. 

A inauguração do estaleiro-escola, em agosto de 2023, teve como um dos convidados o velejador Amyr Klink, recorda Lima. “Lá eu ressaltei que enquanto não temos a cessão de uso da Ilha de Brocoió, a Universidade do Mar, no entendimento do Baía Viva, começa com o estaleiro-escola”, afirma. Ele vislumbra inúmeras inovações possíveis para projetos de capacitação de carpintaria naval artesanal e de fortalecimento da pesca artesanal, voltados para comunidades da Baía de Guanabara. “O estaleiro-escola da Baía de Guanabara é a práxis da Universidade do Mar através de uma ação educativa e de inovação tecnológica, envolvendo comunidades pesqueiras, academia (UFRJ) e o Baía Viva”, acrescenta o ambientalista.

Diante da falta de retorno governamental sobre a questão que envolve a cessão de uso da Ilha de Brocoió para as atividades da Unimar, o Movimento Baía Viva encaminhou uma solicitação formal de reunião urgente com a reitora da UERJ, professora Gulnar Azevedo e Silva, e o vice-reitor, professor Bruno Deusdará, empossados em janeiro. Além de destacar a importância das ações de ensino, pesquisa e extensão da proposta, foi enfatizado no documento encaminhado, compartilhado com a reportagem, que são inúmeras as ações culturais e socioambientais que poderiam ser impulsionadas a partir da estrutura física instalada em Paquetá. 

Entretanto, segundo argumentado na solicitação, tendo em vista boatos circulados na ilha, dando conta de que o espaço seria cedido à iniciativa privada, “lamenta-se que o atual governo do estado pretenda dar outra destinação a aquele bem público de grande relevância e valor histórico-cultural e ecológico, o que a nosso ver é inadequado e compromete sua função social”. 

Foi argumentado, ainda, pelo Movimento Baía Viva, que, “na gestão do ex-governador Sérgio Cabral por diversas vezes houve a tentativa de alienação (venda) do imóvel da Ilha de Brocoió para fins de uso como complexo turístico de interesse da especulação imobiliária e até se especula sua destinação como cassino, o que gera bastante preocupação da população de Paquetá e dos ecologistas e pesquisadores/as que atuam na defesa dos ecossistemas e povos da Baía de Guanabara”. Para a organização ambientalista, tais atividades privadas “provocariam maior perturbação ambiental”, além de “tirarem a tranquilidade da vida comunitária”.

Mestres e alunos testam o barco de pesca artesanal em passeio pela Baía de Guanabara. Crédito: Projeto de Carpintaria Naval Artesanal/Divulgação.

Em resposta às solicitações de posicionamento da UERJ, foi informado, por intermédio da assessoria de imprensa da instituição, que o Programa de Extensão tem objetivo de “estimular atividades acadêmicas e técnicas para fortalecer ensino, pesquisa, extensão e inovação, promovendo o desenvolvimento sustentável da região costeira do estado do Rio de Janeiro”.

Foi argumentado também pela UERJ, em seu comunicado, que “independentemente da cessão da Ilha de Brocoió, o projeto da Universidade do Mar tem desenvolvido diversas atividades, desde sua criação”. Como exemplos foram mencionadas “ações de conscientização e promoção da educação ambiental com escolas e comunidades; atividades técnicas como monitoramento de espécies marinhas e participação na Revisão do Plano de Manejo da Estação Ecológica de Tamoios, em Ilha Grande; e também consultorias para entidades pesqueiras”. Além disso, foi afirmado que a Reitoria, recém-empossada, vinha “avaliando com atenção os atuais projetos e demais ações da Universidade”.

Quanto aos questionamentos da reportagem quanto às notícias de que o local pretendido para instalação de atividades da Unimar poderia vir a ser cedido à iniciativa privada, foi afirmado pela UERJ que, “até o momento, não temos ciência de nenhuma atualização em relação ao processo de cessão da Ilha de Brocoió”. “Quanto à uma eventual cessão da Ilha do Brocoió à iniciativa privada, este é um assunto que foge do âmbito da Universidade e do qual não temos conhecimento”, reiterou o comunicado da instituição.

Já o governo do estado silenciou diante de esclarecimentos solicitados pela reportagem, por meio de e-mail da Casa Civil. Da mesma forma, não houve retorno ao contato mantido via WhatsApp com o subsecretário estadual de Relações Internacionais da Casa Civil, Adilson de Faria Maciel. Com ele, as organizações parceiras da Unimar participaram de inúmeras reuniões presenciais, em diálogos que contribuíram para a pactuação da cessão de uso da Ilha de Brocoió pela Unimar, solicitação formalizada em novembro de 2021.

  • Elizabeth Oliveira

    Jornalista e pesquisadora especializada em temas socioambientais, com grande interesse na relação entre sociedade e natureza.

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