Reportagens

Como conservar a soja

No Pará, a ong ambientalista TNC negocia a regularização do passivo ambiental de sojicultores, com dinheiro doado pela principal compradora do grão, a Cargill.

Manoel Francisco Brito ·
10 de fevereiro de 2006 · 19 anos atrás

The Nature Conservancy (TNC) é uma ong internacional riquíssima para os padrões de qualquer ong. Só nos Estados Unidos, sua política de comprar terras para preservar paisagens já cobre mais de 6 milhões de hectares. Tem a meta de, até 2015, garantir o futuro de pelo menos 10% dos 30 sistemas naturais mais importantes que identificou ao redor do planeta. Sua dotação chega aos 2 bilhões de dólares.

Na página que mantém na Internet, afirma que sua missão é “proteger plantas, animais e os ecossistemas naturais que representam a diversidade de vida no planeta, conservando as terras e águas de que precisam para sobreviver”. Tomada ao pé da letra, a frase poderia muito bem induzir seu leitor a imaginar que parte fundamental do trabalho da TNC na Amazônia brasileira envolve o combate à expansão das plantações de soja sobre a floresta. Longe disso. Desde que o grão esteja sendo plantado dentro das regras que regulam a relação entre fazendeiros e natureza, a TNC acha que não há nada de errado com a presença crescente da soja na região Norte do país.

“Nosso objetivo é engrossar o número de produtores de soja que respeitam as leis ambientais”, diz Ana Paula Barros, representante nacional da TNC. É com base nele que a TNC tenta intermediar um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) entre sojicultores com passivo ambiental no município de Santarém, no Pará, às margens do rio Tapajós, e órgãos federais. Já cadastrou e está levantando as irregularidades ambientais de 130 plantadores do grão na região que vendem sua produção para a multinacional Cargill. O custo do projeto, segundo Barros, é de um milhão de dólares. Um quarto dessa conta foi assumida pela própria Cargill. O resto está sendo coberto por repasses feitos pela embaixada da Inglaterra em Brasília.

Todos os produtores cadastrados pela ong atropelaram a lei sobre a manutenção de reservas legais em suas propriedades – que na Amazônia significa conservar a floresta em 80% do terreno – e ao desmatamento de áreas de preservação permanente (APPs), como matas em margens de rio e próximas a nascentes. Pelo levantamento feito até agora, o passivo é grande. Em relação à falta de reservas legais, o déficit desses produtores, pelo levantamento inicial, bate em 1.500 hectares. No que diz respeito às APPs, desmataram em torno de 530 hectares de floresta e nesse caso, segundo Barros, não há escapatória. “Terão que reflorestar”, diz. Mas a TNC está tentando saídas mais criativas na questão das reservas legais.

Vaga ameaça

Nenhuma, por enquanto, envolve a exigência do reflorestamento das propriedades. “A idéia é buscar opções que a lei dá”, diz Barros. Uma delas é achar área de floresta na Bacia do Tapajós e constituir um fundo para comprá-la e mantê-la de pé para compensar a falta de matas nas propriedades. Mas também se discutem alternativas que, pelo menos na sua letra, nem a lei e tampouco as regulamentações dão. Como por exemplo, criar outro fundo para regularizar problemas fundiários em unidades de conservação na região. A TNC também anda ventilando em reuniões com outras ongs e governos a idéia de implementar mecanismo pelo qual a falta de reserva legal possa ser compensada com contribuições a fundos de manutenção de Parques e Estações Ecológicas na Amazônia, como o Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA).

Essa última proposta encontra muita resistência, porque ela libera o fazendeiro de manter parte da mata em suas terras e lhe dá um crédito por manter árvores em terras públicas, onde elas já estão de pé. É uma aritmética cujo resultado líquido é diminuir o tamanho da floresta. Seja qual for o caminho escolhido, ele tem um custo e ainda não está claro quem é que vai pagar por isso. “A Cargill se dispõe a fazer uma contribuição”, diz Margareth Francis, do escritório da TNC em Belém. “A Cargill está longe de discutir isso. Em princípio, ela não porá dinheiro algum”, corrige Barros. “Quem sabe, talvez no futuro”. Resta saber, portanto, que incentivo esses 130 produtores, que apesar da situação ilegal continuam plantando e vendendo soja para a empresa, enfrentando apenas o dissabor de multas do Ibama que raramente são pagas, terão para colocar a mão no bolso e corrigir sua situação.

Há uma ameaça da Cargill de parar de comprar soja produzida fora dos padrões da regulação. Mas ela é vaga. Não foi oficializada e muito menos tem prazo para entrar em vigor. “Olha, 99% da soja que cresce no Brasil é irregular”, diz Barros, insinuando que a empresa não tem muita opção a não ser fazer parte da ilegalidade geral. Agora, mesmo que houvesse dinheiro para levar esse TAC adiante, ou que a empresa batesse com o pau na mesa e parasse de comprar soja com passivo ambiental, dificilmente o documento seria costurado rapidamente. Além dos fazendeiros, o TAC teria que ter a ratificação de órgãos públicos como o Ibama, o Incra e o Ministério Público Federal. E as propostas que a TNC tem levado a eles para viabilizar o documento “demandam muitas inflexões legais”, como explica da maneira mais delicada possível o Procurador da República em Santarém, Felipe Fritz Braga.

Outro passivo ambiental

“Do Ibama, pede-se anistia a 100% das multas. O Incra, para participar, teria que editar uma nova norma, pois a que o órgão tem em vigor permite que ele seja interveniente em TACs que dizem respeito a propriedades de até 100 hectares, o que não é o caso”, diz o Procurador. “Esse é um produto que essa empresa, a TNC, está tentando construir, mas por tudo isso, se ele sair, ainda demora”.

– Mas a TNC não é uma empresa, Procurador. É uma ong. Foi ato falho?

– Não, eu sei que ela é uma ong. Mas age como uma empresa tentando vender esses TACs como produtos aqui na Amazônia. Outras ongs do mesmo porte fazem isso. A concorrência é acirrada.

O TAC intermediado pela TNC também envolve um comprometimento definitivo da Cargill de não comprar soja produzida a partir de passivos ambientais. O que não é mau, embora pela lei ela não precisasse de um novo papel para tomar esta atitude. “Existem lacunas na fiscalização”, diz Braga. “Não há controle sobre a empresa. Aliás, não há controle sobre nenhum grande comprador de soja no Brasil”. Enquanto isso, a soja segue comendo a floresta amazônica. Na área de Santarém, a partir de 2003, o grão ultrapassou a pecuária como principal agente do desmatamento, conta o Procurador. Foi nesse exato ano que a Cargill inaugurou seu porto na cidade, na margem do Tapajós. E a obra, assim como a soja que ela ajuda a escoar para os mercados importadores, foi também feita ao arrepio da legislação ambiental.

O porto começou a ser construído em 2000. “Na marra, sem o Estudo de Impacto Ambiental (EIA)”, conta o padre Edilberto Sena, da Diocese de Santarém. “Ele foi erigido à força de liminares na Justiça”. E, como sempre acontece nesses casos, contou, lembra Sena, com uma ajudinha da Presidência da República, que em 2004 publicou decreto transformando toda a frente da cidade debruçada sobre o Tapajós em área de porto. Ainda se discute outro Termo de Ajuste de Conduta (TAC) em relação às docas da Cargill, fruto de processos abertos contra a empresa por ongs ambientalistas e ligadas aos movimentos sociais da região. Essa novela ainda está longe do fim, e apesar da boataria de que a TNC está trabalhando para intermediar um acordo entre as partes, Ana Paula Barros, a representante da ong, garante que ela não tem nada a ver com a história do porto. Só com a legalizaçnao da soja ilegal.

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Comentários 1

  1. César Augusto diz:

    Já se vão 10 anos praticamente dessa matéria, e até hoje, quase nada foi feito para solucionar , o CAR(cadastro ambiental rural) caminha a passos de jabuti, sendo prorrogado ano a ano, agora vai pra 2016, as multas foram "anistiadas" para quem fizer o CAR, a CARGILL, continua na mesma pegada, e sendo uma multinacional deveria exigir mais dos fazendeiros que vendem a soja pra ela em matéria de meio-ambiente, pelo menos, respeito ao Novo Código Florestal, no entanto o próprio novo código, já enfraqueceu a Lei, e hoje em dia é permitido até adquirir áreas dentro de Parques e Reservas já instituídos com propósito de conservação, oque dá brecha para ninguém recompor sua reserva na sua própria propriedade, no entanto tem que ser do mesmo bioma, e por aí vai, só que ninguém até agora viu alguma propriedade rural plantando mata nativa,mata ciliar, ou cercando remanescente para recuperar o passivo, só se vê mesmo é venda de mais terra bruta, mais derrubada em áreas já desgastadas, menos árvores, menos fauna, mais desertos onde só cresce, soja, capim, cana ,e daí por diante, em milhóes de ha, e blau, blau , pro que diz a Lei, o negócio é produzir e ganhar dinheiro…o resto se dá um jeitinho não é mesmo….