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Paraíso proibido

Por pressão dos moradores, a Praia de Aventureiro, em Ilha Grande, no Rio, vai deixar de ser reserva biológica para poder abrigar gente. A especulação imobiliária é um risco.

Andreia Fanzeres ·
18 de agosto de 2006 · 18 anos atrás

Para conhecer Aventureiro é preciso levar o nome desta praia de Ilha Grande, no Rio de Janeiro, ao pé da letra. Ou você passa horas num barquinho em mar aberto, ou atravessa uma das montanhas mais íngremes de toda ilha. Mas se ao pisar naquela praia você decidir ficar por lá alguns dias, vai ser enquadrado em outra categoria de visitante: aventureiro-fora-da-lei.


A reserva biológica foi criada em 1981 e por lei ninguém pode morar dentro deste tipo de unidade de conservação, mas os habitantes da praia nunca receberam indenização nem foram removidos. “Naquela época o Brizola administrava o Rio. E em função de uma política extremamente voltada para o social, nunca conseguimos retirar as pessoas do Aventureiro”, lamenta a bióloga Norma Crud Maciel, chefe da Rebio e funcionária da Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (Feema) desde 1975. “Jamais conseguimos um político para nos apoiar”, diz.

Depois de tanto tempo, os moradores acabaram adaptando seu estilo de vida à presença cada vez mais significativa do turismo. Antes, não funcionavam na praia bares e restaurantes com alvará da prefeitura de Angra dos Reis, nem havia gente que pagava IPTU ao município – imposto que passou a ser cobrado em 1988. “Os moradores recebem serviços da prefeitura, como uma escola, coleta de lixo, além de manter uma merendeira e um agente de saúde no Aventureiro”, justifica Elisabeth Brito, secretária municipal de meio ambiente.

Por temer a desafetação da praia e o que ela pode vir a se tornar fora da Rebio e ao alcance da especulação imobiliária, os moradores se organizaram. Conseguiram o apoio de um grupo de pesquisadores que em julho assinou um manifesto pedindo para que Aventureiro seja transformada em uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS).

Controvérsia


Mas isso não basta para quem acompanha os diversos casos de empreendimentos luxuosos que têm ameaçado Ilha Grande. “A ilha tem enormes problemas fundiários. Volta e meia aparece um empresário se dizendo dono de alguma praia, com documentos grilados. Já existem diversas delas privatizadas. Se isso acontecer em Aventureiro, vai ser difícil reverter”, considera Alexandre Guilherme de Oliveira e Silva, membro do Comitê de Defesa da Ilha Grande (Codig).

Os pesquisadores que assinaram o manifesto concordam. Por isso formalizaram a proposta da RDS. Segundo o documento, a categoria é ideal porque vai servir de zona de amortecimento para segurar a pressão sobre a reserva, além de permitir turismo, pesquisa cientifica e educação ambiental. Norma Maciel vê desvantagens nessa idéia, que vai implicar em mais sobreposição de unidades de conservação na Ilha Grande, sendo que elas nunca foram implementadas. “Eu estou farta de ver figuras no papel, umas por cima das outras. Vai ser mais um papel, com outro plano de manejo, outro diretor, e vai precisar de outros recursos”, diz.

A prefeitura de Angra dos Reis é a única que não acredita no risco de especulação imobiliária. “Ainda estamos fazendo estudos, mas a prefeitura quer uma unidade de conservação que permita a permanência das pessoas que já estão lá e não comprometa a renda nem o meio ambiente”, resume Elisabeth Brito.

Solução cuidadosa

A coexistência da população local com os turistas naquela região será uma tarefa delicada. Segundo estimativas do órgão, em épocas de carnaval e fim de ano, Aventureiro chegava a receber entres três e quatro mil pessoas, quando avaliações preliminares indicam que a praia suporta, no máximo, 800 visitantes. A ocupação excessiva, ainda que temporária, provocava graves problemas de falta d’água, línguas negras decorrentes do lançamento do esgoto no mar e desmatamento para abertura de novas áreas para camping. Inclusive no entorno do posto da Feema, sem que nenhum funcionário do órgão impedisse a prática.


As praias do Leste e do Sul são consideradas umas das áreas de restingas mais preservadas do Brasil. Segundo Norma Maciel, entre essas duas praias deságua no mar o rio Capivari, que abastece duas lagoas intocadas. “Aquilo lá é um maná, uma benção”, diz. “As lagoas são perfeitas. As tainhas entram naquela região de rio e mangue, reproduzem-se e crescem. É a Rebio que fornece grande parte desses peixes encontrados na Baía de Sepetiba hoje”, conta.


A Feema diz que, agora isso mudou. Depois do escândalo dos acampamentos e da ocupação ilegal na Ilha Grande, a entidade dispensou os trabalhos do funcionário que mantinha no posto do Aventureiro e colocou em seu lugar a esposa do presidente da associação dos moradores, Daise Benevides. Ela passou a ocupar um cargo de confiança dentro da Feema depois de ter apresentado projetos ambientais para minimizar os impactos da presença humana na praia e garantir aos moradores alternativas de renda que não dependam tanto do turismo, como cultivos marinhos.

Os novos caiçaras

Mas os moradores insistem que dependem do turismo, o que não os descaracteriza como caiçaras. Os estudiosos que assinaram o manifesto defendem a presença dessas pessoas há pelo menos quatro gerações em Aventureiro. Dizem que eles têm práticas locais de pertencimento, como o enterro do cordão umbilical dos recém nascidos nos terrenos. Além disso, a população local adquiriu conhecimento empírico do ambiente no que se refere à flora, fauna, clima e regime de marés. Com base em estudos em Aventureiro, os pesquisadores constataram ainda que a população conserva um padrão tradicional de organização do trabalho, baseado na divisão sexual das tarefas. A exploração do turismo foi conjugada à manutenção do trabalho familiar, prática das roças e pesca.

Algumas pessoas dizem que a pesca deixou de ser importante economicamente na região porque o Parque Estadual Marinho do Aventureiro, criado em 1990, impediu a prática naquela zona costeira. Algo que Norma Maciel, que também administra o parque, nega veementemente. “O nosso parque foi criado com o viés básico de que seria permitido seu uso pelos caiçaras”, afirma a bióloga. Mas as queixas são de que, em vez deles, companhias de pesca industrial adotam o arrasto para capturar os peixes na área protegida. “É fácil reclamar, mas nunca nenhum morador do Aventureiro me telefonou para denunciar o arrasto. Eles não colaboram com a fiscalização. Se eles ajudassem, seria melhor para todos”, diz Norma.

De acordo com relatos de quem vive na região, com o fim do turismo, não existe mais uma atividade principal sob a qual os moradores de Aventureiro baseiam sua subsistência. Alguns continuam pescando, outros têm residência em Angra dos Reis e passam a semana sobrevivendo de fretamento de barcos, ou de outro tipo de ocupação no continente. A prefeitura de Angra afirma estar fazendo um levantamento sócio-econômico daquela comunidade para descobrir como eles vivem hoje e como era antes da proibição dos acampamentos. “Eles cobravam pouco pelo camping, não dá para sobreviver do que eles ganhavam nos feriadões durante o ano inteiro. Só depois de sabermos isso poderemos discutir uma alternativa de renda e preservação do ambiente para eles”, explica Elisabeth Brito.


Mas para chegar em Aventureiro é preciso entrar em contato com moradores que tenham barcos e combinar um dia e uma hora. Não há transporte regular. O preço da travessia varia entre 20 e 25 reais. Mas se você optar pela aventura, lembre-se que o passeio vai ter que ser curto porque dormir por lá continua proibido.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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