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Lições gaúchas

Os agricultores do sul aderiram à soja transgênica e ensinam ao país o valor da razão econômica, a importância da estabilidade legislativa e o peso da realidade.

15 de outubro de 2004 · 20 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

A Medida Provisória nº 223, de 14 de outubro de 2004, que estabelece normas para o plantio e comercialização da produção de soja geneticamente modificada da safra de 2005 e dá outras providências, é mais um capítulo da emocionante novela dos transgênicos no Brasil. Esse é um espetáculo que, assim como nas soap operas, é feito com thrillers, clímaxes e anticlímaxes, intriga e tudo mais que possa trazer emoção para o espectador, mantendo-o preso à TV pelo maior espaço de tempo possível.

Os agricultores gaúchos, com a clara opção pelo plantio da soja geneticamente modificada, estão dando uma lição para todos nós. Aliás, várias são as lições. A primeira delas é a da racionalidade econômica. Certamente, o plantio da soja geneticamente modificada não teria se expandido da forma que se expandiu no estado do Rio Grande do Sul caso ela não fosse economicamente vantajosa para o plantador. Curiosamente, as vozes que se levantam contra as vantagens econômicas para os plantadores de soja geneticamente modificadas são de indivíduos e grupos urbanos que, provavelmente, não sabem a diferença entre um grão de soja e um grão de feijão.

A segunda lição que os agricultores gaúchos estão dando à sociedade brasileira é a de que o governo deve representar o povo e não ser refém de pequenos grupos de interesse particularizados. Com organização, perseverança e dedicação, os agricultores do Rio Grande do Sul têm conseguido legitimar o seu trabalho e as suas culturas, independentemente do que setores urbanos e totalmente dissociados da realidade do campo têm afirmado sobre organismos geneticamente modificados. Dentro da mais rica tradição do pensamento de Henry David Thoreau eles têm logrado resistir às pressões e, de forma ordeira e pacífica, fazer valer seus argumentos.

A terceira lição é a de que a realidade é mais forte do que os nossos devaneios. Toda a argumentação contrária ao plantio de organismos geneticamente modificados está fundada no princípio da precaução e no fato de que devemos conhecer os riscos antes que o produto seja lançado no ambiente. Pois bem, a soja geneticamente modificada vem sendo plantada há muitos anos no Rio Grande do Sul e, ao que se sabe, nenhum dano ambiental foi noticiado. Não tenho dúvida em afirmar que se uma única marreca piadeira tivesse morrido engasgada com um grão de soja geneticamente modificada, as baterias contra o “crime ambiental” teriam sido disparadas de forma inapelável.

Estamos diante da terceira Medida Provisória sobre um assunto que, à toda evidência, já está esgotado. À exceção de grupos que, em função de convicções profundas, mas não necessariamente racionais, insistem em se opor a uma realidade de fato inexorável, ninguém agüenta mais ouvir falar na matéria. Os agricultores têm necessidade de tranqüilidade e legalidade para poderem trabalhar e produzir as riquezas de que o nosso país precisa.

Uma questão que tem sido pouco debatida é aquela que se refere aos riscos e prejuízos gerados pela indefinição sobre o assunto. Em primeiro lugar, não há dúvida que a clandestinidade da soja geneticamente modificada faz com que as autoridades sanitárias não tenham controle sobre a qualidade das sementes. Este é um problema sério que precisa ser enfrentado pelo governo. Somente com a venda regular da soja e com a sua conseqüente certificação sanitária ele poderá ser superado.

Outra questão gravíssima é a proliferação da venda clandestina fazendo com que a venda de cultivares no Brasil venha tendo uma queda expressiva. Com efeito, em várias regiões do Brasil a queda na venda de cultivares é um fato concreto. Muitas empresas que durante anos e anos investiram na elaboração de cultivares vêm assistindo à pirataria crescente contra os seus cultivares protegidos e registrados. A clandestinidade do plantio da soja geneticamente modificada é um incentivo a tal pirataria, pois dependendo da região do país o cultivar a ser plantado será diferente. Da mesma forma que a pirataria de CDs, brinquedos, tênis e outros produtos é crescente, o mesmo ocorre com os cultivares. No que se refere às sementes geneticamente modificadas, a instabilidade legislativa é um claro incentivo para práticas ilegais. Uma das maiores prejudicadas com a pirataria de cultivares é a Embrapa que, como se sabe, é uma das empresas líderes no setor e, sem dúvida, é a principal responsável – do ponto de vista técnico e científico – pela enorme expansão da moderna agricultura brasileira.

O Senado Federal, em decisão corajosa, decidiu aprovar o Projeto de Lei de Biossegurança e confirmar o que já estava previsto na lei nº 8.974, de 5 de janeiro de 1995. Isto é, a competência da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio para atestar a biossegurança de qualquer produto a ser lançado no ambiente. É preciso dizer o óbvio muitas vezes neste nosso Brasil, dizê-lo até a exaustão. Aliás, tal competência foi reafirmada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região no célebre julgamento da ação civil pública movida pelo IDEC em face da União Federal e do Ibama. Nem se argumente que está vigente a medida cautelar, visto que o TRF entendeu mantê-la, muito embora tenha negado o mérito da ação civil pública. Como é elementar em direito, o acessório segue o principal e a norma processual expressamente determina que uma vez julgada improcedente a ação principal, cessam os efeitos da cautelar. A Medida Provisória, a propósito, é extremamente benéfica para os autores da mencionada ação, pois se a proibição estivesse mantida pela cautelar – como entendem –, caso o Acórdão restasse confirmado pelo Superior Tribunal de Justiça (STF) ou pelo Supremo Tribunal Federal (STF), conforme o caso, os autores da ação deveriam indenizar os prejuízos causados aos réus durante a vigência da medida cautelar, como expressamente determina o Código de Processo Civil. Ressalte-se que a responsabilidade é objetiva.

A matéria está de volta para a Câmara, que deverá dar a última palavra. Entretanto, há que se observar que, na origem, o Projeto de Lei havia merecido parecer favorável do então líder do Governo, deputado Aldo Rebelo, hoje Ministro de Estado que acertadamente, em meu ponto de vista, definiu que cabe ao Poder Executivo definir as hipóteses de significativo impacto ambiental para fins de que seja exigido o Estudo Prévio de Impacto Ambiental. Desde que existem Estudos de Impacto Ambiental no Direito Brasileiro sempre foi assim. Infelizmente, mais uma vez, o óbvio tem que ser repetido.

Enfim, a Medida Provisória foi adotada como uma forma transitória, visto que se espera seja aprovado, finalmente, o Projeto de Lei de Biossegurança.

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