Colunas

Sarna para se coçar

Ao criar uma diretoria “sócio-ambiental”, o Ibama está se metendo onde não deve. Passa a abrigar conflitos que não dizem respeito à sua atribuição essencial.

24 de março de 2006 · 19 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

A minha falecida avó materna, com a sabedoria que só as avós possuem, dizia que quando alguém estava se metendo com um assunto do qual não entendia, ou para o qual não tinha capacidade de resolver, esse indivíduo estava “arrumando sarna para se coçar”. Um ditado popular simples, direto e verdadeiro. Pois não é que o nosso Ibama resolveu “procurar sarna para se coçar”?

Vejamos as notas publicadas na seção Salada Verde do dia 23 de março: “As gerências regionais e os escritórios do Ibama do norte de Mato Grosso estão sem comunicação por telefone. As linhas foram cortadas por falta de pagamento. Em alguns lugares, só é possível receber chamadas. Por enquanto”. Ao mesmo tempo, o órgão resolveu enveredar pelos caminhos “sócio-ambientais”, senão vejamos: “Semana passada o Ibama criou mais uma diretoria, a de desenvolvimento sócio-ambiental. Agora, além de se descabelar para conseguir preservar os recursos naturais renováveis, o instituto quer abraçar mais uma atribuição: cuidar do bicho homem”.

Efetivamente, o decreto nº 5.178, de 13 de março de 2006, estabeleceu uma nova estrutura regimental para o Ibama – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. Foi criada por força dele a Diretoria de Desenvolvimento Sócio-ambiental, que ocupa altaneira a alínea a do inciso IV do artigo 3º da nova estrutura regimental da autarquia.

Mas afinal, o que é a tal diretoria e quais são as suas atribuições? Bom, em primeiro lugar ela é um dos “órgãos específicos singulares” que integram a estrutura do Ibama. Isto é ótimo, visto que ela não é um órgão genérico plural. Mas no fundo, até que os objetivos da diretoria não são tão largos assim, pois de acordo com o artigo 13 ela tem as seguintes competências:

Art. 13. À Diretoria de Desenvolvimento Sócio-ambiental compete coordenar, planejar, controlar, supervisionar, normatizar, monitorar, orientar e avaliar a execução das ações federais referentes à educação ambiental e à proposição de criação, gestão e manejo das unidades de conservação das categorias de Reserva Extrativista e Reserva de Desenvolvimento Sustentável Federais.

Fica clara a atribuição da diretoria. É muito pouca coisa e não havia a menor necessidade de ser criada. Ela pretende atuar em educação ambiental e criar reservas extrativistas e de desenvolvimento sustentável. Nada além disto. Eu, contudo, suspeito que ela esconda um “cavalo de tróia”. Milita em favor da minha argumentação o fato de que a Diretoria de Ecossistemas é a encarregada das unidades de conservação, à exceção das reservas extrativistas e de desenvolvimento sustentável (1), visto que não se pode dizer que áreas de preservação permanente e reservas legais sejam unidades de conservação.

Social ou ambiental?

Vamos imaginar a seguinte situação. Alguém vai ao Ibama e requer o licenciamento ambiental para uma atividade, por exemplo, na Amazônia. A região na qual o empreendimento pretende se instalar é habitada por “comunidades tradicionais” ou por “povos da floresta”. Opa! Aqui há uma possível questão sócio-ambiental a ser enfrentada pela nova diretoria. Aliás, quero deixar claro que os problemas sociais devem ser enfrentados de forma firme, constante e séria. A questão, nesta altura, é saber a quem compete fazê-lo. Na verdade, o Ibama deveria se perguntar “O que é que eu estou fazendo neste disco?”. No entanto, ele faz justamente o contrário, pois incorpora demandas para as quais não pode dar solução e faz com que os verdadeiros encarregados dos temas se subtraiam às suas responsabilidades.

O incrível da criação da tal diretoria é que o Ibama, já fragilizado ante órgãos como o Ministério da Agricultura, Aneel, ANP e outros, traz para o seu interior mais uma fonte de potenciais conflitos, pois as comunidades tradicionais, certamente, são agentes legítimos de reivindicações sociais que devem ser atendidas por quem de direito. A criação da Diretoria, na minha maneira de ver, aprofunda um desequilíbrio estrutural na composição do Ibama e amplia um equívoco de concepção. Refiro-me ao seguinte. O Ibama possui as seguintes diretorias: Diretoria de Desenvolvimento Sócio-ambiental; Diretoria de Florestas; Diretoria de Fauna e Recursos Pesqueiros; Diretoria de Ecossistemas; Diretoria de Licenciamento Ambiental; Diretoria de Qualidade Ambiental; e Diretoria de Proteção Ambiental.

As diretorias, como se pode ver da estrutura aprovada, cuidam de matérias inteiramente diversas e poucos compatíveis entre si. Estas diretorias são formalmente iguais e possuem a mesma hierarquia. O licenciamento ambiental é, efetivamente, uma arbitragem entre os diferentes interessados em determinado uso do solo. Não é difícil imaginar conflitos entre diretorias diferentes no curso de um licenciamento ambiental. Agora, um novo ponto de conflito foi incorporado à própria administração superior do Ibama. Seguramente, o próximo passo é que nova diretoria faça sua estréia triunfante no quesito “compensação sócio-ambiental”.

É elementar em qualquer negociação que a introdução de um novo agente implica em uma potencialização dos conflitos e desentendimentos. A legítima pressão que deveria ser feita sobre o Ibama por órgãos como o Incra, a Funai e outros, passou a ser feita pelo próprio Ibama, agora com uma nova diretoria. Não é necessário ser uma pitonisa para se perceber que os setores propriamente “ambientais” levaram um uppercut. Até onde eu sei, um mico-leão não é alistável como eleitor, o mesmo se diga de uma bromélia. Por outro lado…

De fato, a mudança necessária no Ibama, do meu ponto de vista, é a criação de um órgão apenas e tão somente para licenciamento ambiental; a transformação do jovem Serviço Florestal Brasileiro em algo que faça sentido, ou seja, dar-lhe todas as atribuições referentes às florestas e a estruturação de um órgão voltado para a diversidade biológica. Meias solas não vão resolver nada.

O problema não é admitir nas demandas ambientais a legitimidade da participação dos “povos da floresta”. A questão é saber que papel eles vão desempenhar. Aliás, não me passou indiferente o fato de que há uma certa “institucionalização” do sócio-ambiental e, aqui, não há nenhuma novidade. Repete-se uma velha prática da política brasileira que é a cooptação da rebeldia até pasteurizá-la em um DAS ou em um emprego público qualquer. Entretanto, somente o tempo dirá se a medida foi acertada ou não.

****

Tem-se debatido muito sobre o Parque Nacional de Itatiaia neste O Eco. O Ibama em seu site tem uma página sobre o parque que é bastante informativa e que vale a pena ser visitada.

(1) Art. 16. À Diretoria de Ecossistemas compete coordenar, controlar, supervisionar, normatizar, monitorar e orientar a execução das ações referentes à proposição de criação e gestão das unidades de conservação federais, excetuadas as categorias previstas nos arts. 13 e 14, à regularização fundiária das unidades de conservação, à proteção e manejo de ecossistemas e ao controle do uso do patrimônio espeleológico.

Leia também

Reportagens
11 de dezembro de 2024

Supressão de área verde para construção de complexo viário gera conflito entre Prefeitura e sociedade civil em São Paulo

Obras levariam à derrubada de 172 árvores no canteiro central da avenida Sena Madureira; municipalidade recorreu de liminar do MP-SP que mantém operação paralisada

Notícias
11 de dezembro de 2024

Mato Grosso aprova norma que limita criação de Unidades de Conservação no estado

Pelo projeto, só poderão ser criadas novas áreas protegidas após a regularização fundiária de 80% das já existentes. Organizações criticam decisão

Reportagens
11 de dezembro de 2024

Garimpos ilegais de ouro podem emitir 3,5 toneladas de carbono por hectare e concentrar mercúrio no solo

Pesquisadores da USP e colaboradores analisaram amostras de áreas de mineração em quatro biomas, incluindo Amazônia

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.