Esta é uma coluna voltada fundamentalmente para assuntos jurídicos e é bom que assim permaneça, pois o direito é uma das únicas áreas nas quais arrisco alguns palpites. A minha auto-censura não me permite palpitar em questões outras além daquelas que a bondade dos amigos tem me autorizado. Cinema, certamente, não é assunto que eu possa legitimamente incluir no meu rol de palpites. Contudo, vou me aventurar pelos tortuosos caminhos da telona e arriscar algumas besteiras sobre o filme o Homem Urso, cujo diretor é o controvertido Werner Herzog. O filme, narra a triste história de Timothy Treadwell, um americano da Florida que, após mudar-se para a Califórnia e criar uma nova vida para si próprio, mudando nome, origens, nacionalidade e outros aspectos de sua vida pessoal, resolve que havia chegado o momento de salvar os Ursos Pardos da extinção e, assim decidido, passa 13 verões em Kodiak Island, Alasca, até que, conjuntamente com a namorada é devorado por um dos seus protegidos. Com exceção de algumas poucas cenas rodadas por Herzog, a base do filme é constituída por gravações realizadas pelo próprio Treadwell que sempre se fazia acompanhar por uma câmara, com a qual registrava a sua convivência com os animais. O filme é, seguramente, extraordinário. O cenário de Kodiak Island é mais do que deslumbrante e a loucura de Treadwell uma advertência dos males que o irracionalismo pode causar. Treadwell pareceu-me a forma culminante do anti-humanismo que pode ser encontrado em muitos pensadores “ambientalistas”. Peter Singer com a sua teoria do “especismo”, sustenta que o Ser Humano age de forma egoísta e exerce uma espécie de imperialismo sobre outras espécies. Em recente entrevista ao Estado de São Paulo, Singer chegou a sustentar que os grandes gorilas têm mais direito à vida do que os seres humanos. A loucura de um e o “racionalismo” de outro, certamente, indicam um fenômeno muito presente no well to do people: who cares?
Sabemos que existe uma forte tendência à humanização dos animais e que esta se caracteriza, dentre outras coisas, por pessoas que tratam animais de estimação como se esses fossem verdadeiras pessoas, como membros da família. É indiscutível que devemos respeito e compaixão para com os animais e que não devemos submetê-los a tratamentos cruéis, sofrimento e dor. Qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade e boa vontade percebe que os animais que possuem sistemas nervosos desenvolvidos demonstram alegria, tristeza, dor, cansaço e tantos outros “sentimentos”. Este conjunto de “emoções”, no entanto, não é suficiente para que eles se transformem em “iguais” aos seres humanos. Aliás, é importante observar que, do ponto de vista jurídico, a “humanização” dos animais corresponde a uma etapa primitiva do direito e, seguramente, a uma desvalorização do ser humano como tal. Se voltarmos ao direito romano, veremos que o fato de ser humano não era suficiente para que houvesse o reconhecimento de direitos. À exceção do sui ius, que era o pater família, todos os demais eram alieni ius, ou seja, sem direitos. O status de pessoa só era deferido àqueles que ostentassem, simultaneamente, o status civitatis, como cidadão, o status familiae, membro de uma família e o status libertatis, fossem livres. Os escravos, por exemplo, eram equiparados às coisas. Por outro lado, os animais podiam ser punidos por atos ilícitos que tivessem “praticado”. Tudo isto era possível na medida em que o Ser Humano não existia como categoria genérica. Era a posição que cada um ocupava na sociedade e, por suposto, ante à ordem jurídica que atribuía a condição de Humano. Devemos ao Cristianismo a transformação de todos os Homo Sapiens em seres humanos, sujeitos de direito e iguais em dignidade. Cristo, filho de Deus, era igual a qualquer Ser Humano, salvo no pecado, e este fato impedia que se estabelecessem diferenças quanto à dignidade intrínseca da condição humana. É curioso que Treadwell na dolorosa angústia de sua confusão mental vocifera violentamente contra Deus e, em seguida, agradece a Buda, a Cristo, a Alá pelo fato de ter chovido e com isto a seca que assolava Kodiak Island ter sido superada. Os seus ursos não morreriam de sede.
A piração de Treadwell marca uma etapa superior da humanização dos animais: a animalização do homem. Fenômeno que se verifica em diferentes sociedades modernas e que, no Brasil, atinge píncaros assustadores, haja vista, os fornos de micro ondas e as decapitações que são cada vez mais abundantes. Ele buscava se fazer “mais um urso”. Sobre o assunto é bastante significativa a intervenção do Professor Sven Haakanson Jr., diretor do Museu Alutiq (1) que, de origem nativa, de forma muito clara e direta, afirmou que na tradição cultural de seu povo homens e ursos não se misturam, visto que por cerca de 7 000 anos eles aprenderam que ursos são perigosos. Com poucas palavras, o Professor desmantelou um mito urbano muito bem construído que é o da “harmonia” entre a natureza e o ser humano. Aliás, diga-se de passagem que tal mito não é recente. Pensadores como Rousseau e Henry David Thoreau, por exemplo, foram fortes adeptos e divulgadores de tal mitologia. Aliás, na história norte americana, o mito da wilderness é um dos elementos mais relevantes que existem. A nação que se construía no Novo Mundo não tinha a tradição dos países europeus nos quais se podiam contar histórias da Grécia antiga ou de Roma. Não haviam Césares, nem Napoleões para glorificar o passado. Havia a natureza grandiosa e imponente que passou a ser o elemento central da mitologia de uma nova nação que necessitava se legitimar ante os olhos do mundo exterior e de seus filhos. Treadwell é, sem dúvida, uma vítima do mito da wilderness, palavra aliás que ele repete ad nauseam no filme. Thoreau, o líder da desobediência civil e do anti-escravismo, jamais conheceu a vida selvagem. Walden Pond ficava muito próximo a Concord. John Muir esqueceu-se que na wilderness do Parque de Yosemite (2) existiam populações nativas que haviam culturalizado a natureza lá presente.
O mito da vida selvagem faz com que se perca de vista que a natureza, como apontado por Herzog, é feita de conflitos, violência e dureza. Não se pode esquecer que Darwin, em sua origem das espécies, mostrou que a evolução e a seleção natural são resultados de lutas pela sobrevivência, luta sem quartel e sem piedade. Infelizmente, nós seres humanos somos extremamente frágeis. Alguém conhece algum filhote de animal que precisa viver tanto às custas dos pais como os humanos? A nossa única arma para sobreviver na batalha constante que é a vida em natureza é a capacidade de pensar e de agir conforme o pensamento. Assim, podemos construir casas, produzir roupas, alimentos, remédios e tantas outras coisas. Treadwell pagou o preço por não ter percebido – em sua loucura – que a própria natureza havia lhe dado um instrumento fundamental para sobreviver: a razão. Esta poderia ter lhe possibilitado compreender que a sua convivência com os animais somente poderia ocorrer em um nível qualitativamente distinto daquele que denota a convivência dos animais entre si. No momento em que ele se transforma em urso e, portanto, perde o único instrumento capaz de torná-lo apto a enfrentar os animais, ou seja a razão, ele sucumbe. E sucumbe por que no campo da mera força física e dos instintos, o homem não é capaz de enfrentar os grandes animais. É a razão que nos torna humanos e que nos torna capazes de sobreviver na natureza. Esta é uma constatação aristotélica cuja atualidade é marcante. É realmente uma pena que Timothy Treadwell tivesse que pagar com a própria vida para que, mais uma vez, não nos esqueçamos que a nossa convivência com a natureza somente pode ser compreendida a partir de um ponto de vista racional e que reconheçamos as nossas fragilidades em relação aos outros seres vivos.
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Excelente texto!