De onde nem tempo nem espaço
Que a força nos mande coragem
Pra gente te dar carinho
Durante toda a viagem
Que realizas no nada
Através do qual carregas
O nome da tua carne
Terra (Caetano Veloso)
Aqueles com quem contávamos nos falharam miseravelmente. Agora, mais que nunca, precisamos de toda a coragem que houver – coragem para vencer auto-ilusões cômodas e fazer mudanças concretas, por nós mesmos.
Estou falando da atuação dos políticos em Copenhague, na recente conferência mundial sobre o clima. Os líderes mundiais não perceberam a grandeza do momento histórico que se abria diante deles. A maioria só sabia negociar dentro de uma visão de mundo economicista, estreita e obsoleta. Protagonizaram então um frustrante jogo de empurra, cada um querendo que os outros países – sempre os outros – reduzissem ao máximo suas emissões de CO2, enquanto seus próprios países mantivessem o direito de poluir mais um pouco – ou mais um muito. Barack Obama, de quem muito se esperava, foi uma grande decepção. Os emergentes defenderam ferrenhamente o direito de continuar com um modelo de desenvolvimento excelente para o mundo do século 19. Enquanto isso, os submergentes do Pacífico queriam apenas continuar acima do nível do mar.
E os nossos próprios líderes, os representantes de nosso país? No grande palco, a ministra-candidata Dilma Roussef mostrou seu completo despreparo ao dizer que “O meio ambiente é, sem dúvida nenhuma, uma ameaça ao desenvolvimento sustentável e isso significa que é uma ameaça para o futuro do nosso planeta e dos nossos países”. Claramente não sabe do que está falando. Sua fala me lembrou aquela época em que a ditadura militar estava colapsando no Brasil e vários políticos que tinham colaborado com a ditadura a vida inteira tentavam mostrar, de um dia para o outro, que eram democratas desde criancinhas. Agora os candidatos precisam mostrar que são ambientalistas desde criancinhas, porque isso vale uns dez por cento de votos. Quanto ao presidente Lula, politicamente esperto como sempre, fez o que em linguagem de futebol se chama “correr para não chegar”. Apareceu no finalzinho, percebeu (como todo mundo já percebia àquela altura) que não ia sair nada de concreto dali, fez belas propostas que não iriam mesmo ser aceitas e depois um discurso em tom de desabafo, perfeito para capitalizar a frustração ao final da conferência e atrair os holofotes e os aplausos. Resta saber por que, se ele queria tanto resolver o problema, entregou a chefia da delegação a Dilma. Poucas vezes a distância entre a esperteza e a sabedoria foi tão óbvia.
Prejuízos difusos pela soma de bilhões de pequenas ações individuais
Não vamos ficar com meias palavras. Copenhague foi uma baita derrota. Uma imensa oportunidade perdida, e por isso uma derrota, não só para os ambientalistas, como para toda a humanidade. Mas será que podemos pelo menos aprender alguma coisa com esta derrota? O fracasso de Copenhague e a desordem climática global (como Marcos Sá Corrêa lucidamente se refere ao problema) nos colocam diante de uma situação que não é nova, mas nunca foi tão óbvia como agora. Nunca antes da história desse país, ops, nunca antes na história da humanidade, esteve tão evidente a questão dos prejuízos difusos para todos que são gerados pela soma de bilhões de pequenas ações inconscientes e/ou egoístas de cada um de nós.
Os prejuízos difusos estão aí, nos jornais, todos os dias. Os países insulares que desaparecerão sob as águas, como Tuvalu que fez tanto barulho em Copenhague, são apenas a ponta do iceberg (o trocadilho foi acidental, eu juro). Vastas áreas se tornarão secas, haverá fome maciça, novas epidemias, milhões de desabrigados ambientais, e por aí vai. Além disso, boa parte da biodiversidade do planeta deverá desaparecer. Assim como a própria desordem do clima já está acontecendo, todas essas coisas também já estão. Assistimos todo dia a uma imensa série de catástrofes ambientais no Mundo. Uma das conclusões de todos os modelos climáticos é que não só a temperatura média está subindo, como também a freqüência de extremos climáticos – extremos de calor, de frio, de chuva, de neve e de seca – também está aumentando. Catástrofes naturais sempre existiram, claro, mas nós estamos tornando-as muito mais freqüentes e mais intensas. Segundo um estudo de 2009 do Fórum Humanitário Global, entidade liderada pelo ex-secretário geral da ONU Kofi Annan, os efeitos da desordem climática global já matam hoje, no mundo, por fome, doenças ou desastres “naturais”, cerca de trezentas e quinze mil pessoas por ano. Mas cada vez que morre mais alguém numa imensa enxurrada no sudeste, ou até num furacão em Santa Catarina, nós preferimos pensar que não temos nada a ver com isso; é mais cômodo pensar assim, claro. Mas temos. A cada vez que desperdiçamos combustível, ou energia, ou consumimos irresponsavelmente, estamos fazendo a desordem climática global um pouco pior, e portanto o mundo um pouco pior.
O outrismo
É sempre difícil lidar com prejuízos difusos – uma questão central para os problemas ambientais, ou mais ainda, a própria essência dos problemas ambientais. É difícil assumirmos responsabilidades por algo de que sejamos um bilionésimo da causa, mesmo (o que nem sempre é o caso) se reconhecermos que somos um bilionésimo da causa.
Aí entra a questão do outrismo. O outrismo é o nome que eu dou a um modo de pensar bastante popular na questão ambiental, que pode ser resumido da seguinte forma: cada um acha que a culpa dos problemas ambientais é sempre dos outros, nunca de si mesmo.
Copenhague nos deu vários ótimos exemplos de outrismo. De um lado, os Estados Unidos disseram que só limitarão a sério suas emissões se os grandes emergentes como a China também o fizerem – esquecendo que eles mesmos, os EUA, são historicamente os maiores de todos os poluidores. Do outro lado, alguns países ditos “em desenvolvimento” usam o passivo histórico dos países desenvolvidos, poluidores desde o século 19, como argumento para não limitar suas próprias emissões – já também imensas, e no caso do desmatamento no Brasil, geradoras de pouco bem estar. Com isso, querem se reservar o direito de continuar poluindo bastante no futuro. Será que os EUA ou a China tem um planeta de reserva guardado na manga? Espero que sim, mas não acredito muito nisso.
O outrismo no cotidiano, em várias versões
O outrismo, porém, não acontece só no nível das decisões políticas. Ele ocorre também em nossas vidas cotidianas. Cabe refletir um pouquinho: qual a causa da desordem climática global? A resposta pode não ser muito agradável, mas é bastante óbvia: nós.
A desordem climática existe para manter nosso padrão de consumo. Podemos dividir a população humana do planeta em duas parcelas. A primeira é uma expressiva parte da população que tem um consumo acima do tolerável, ou seja, gera emissões de CO2 e outros gases estufa acima do consumo natural desses gases. A segunda parcela tem um padrão de consumo baixo e baixas emissões, e não contribui significativamente para o aquecimento global, mas a maior parte das pessoas que estão nesse grupo tem como maior aspiração entrar para os padrões de consumo do primeiro grupo. Essa aspiração parece bastante legítima, mas é fácil ver que a estória não acaba bem.
Aí aparece com toda força o outrismo. O argumento às vezes é expresso mais ou menos assim: “a primeira parcela, o pessoal que causa o problema, está nos países desenvolvidos; eu vivo num país pobre, então não tenho nada a ver com isso.” Uma outra versão, um pouquinho mais sofisticada, diz “mas a primeira parcela é muito pequena, só os milionários, eu não estou nesse grupo.” Desculpe se estrago a ilusão, mas pessoas de classe média na maioria dos países, inclusive o Brasil, têm padrões de consumo que resultam em emissões acima do tolerável, e portanto também são causa do problema.
O outrismo é uma espécie bastante abundante hoje em dia, infelizmente. Por exemplo, nas perguntas da platéia depois de uma palestra recente, me deparei com um exemplar. Eu tinha acabado de criticar o consumismo desnecessário e de grande impacto ambiental, e falar sobre o que nós, como consumidores conscientes, poderíamos fazer a respeito. Recebi então o seguinte comentário de um ouvinte: “eu acho que a gente tem que colocar o foco sobre os empresários, os ruralistas, é essa gente que destrói”. Beleza, certamente destrói, mas os empresários e os ruralistas vendem para quem?
Mas o outrismo é renitente, e inventou uma outra versão, na qual o outrista não nega que faça parte do grupo que causa o problema, mas argumenta que há gente que tem uma contribuição muito maior que a dele para a desordem climática, e que portanto quem tem que mudar seu comportamento são esses caras, não ele. Há alguns anos eu chamava esse argumento “o sofisma do Maggi e do Bush”; hoje os personagens talvez possam ser atualizados, mas a lógica permanece a mesma. De acordo com o argumento, o Blairo Maggi, na época um dos maiores desmatadores do Brasil, poderia dizer “mas o Bush, com suas políticas, promove muito mais emissões de CO2 que eu, então eu não tenho que mudar meu comportamento, ele é que tem que mudar o dele.” O problema é que, se aceitássemos esse sofisma, quase todas as pessoas do mundo não precisariam mudar seu comportamento. Isso, claro, seria uma receita líquida e certa para o desastre.
Para quem estamos consumindo?
Os pessimistas dizem que as pessoas nunca vão mudar seus hábitos de consumo para fazer a sua parte para combater problemas tão distantes como catástrofes climáticas que podem nunca vitimá-los, ou os refugiados ambientais da África ou do Pacífico, ou a extinção de espécies. Argumentos probabilísticos (do tipo as catástrofes podem também vitimá-los) adiantariam pouco, eu receio. No entanto, esse argumento pessimista parece se basear em que todo o consumo (ou grande parte dele) seja necesssário, ou que nossa cultura não consiga mexer com os poderosos mecanismos psicológicos que levam as pessoas a consumir de forma desperdiçadora.
Não estou nem um pouco convencido desse ponto de vista. Muito do consumo existente, claro, atende a necessidades, cria confortos e melhora a vida das pessoas. Mas uma imensa parte dele, por outro lado, é absolutamente inútil sob esses aspectos. Como foi dito pelo conselheiro financeiro norte-americano Dave Ramsey, “nós compramos coisas que não precisamos, com dinheiro que não temos, para impressionar pessoas das quais não gostamos.” Esse tipo de comportamento é cuidadosamente alimentado pela publicidade e pelo marketing, que puxam pelo que há de pior em nós: as tendências complementares de comprar coisas caras para impressionar outras pessoas, e de selecionar pessoas pelo “nível social” assim exibido. O resultado, tão característico da vida atual, é um modo de vida insaciável (cada nova aquisição produz a necessidade de outras maiores), compulsivo, e que é sem dúvida nenhuma uma das maiores indústrias de produção em massa de frustração e infelicidade humana nesse nosso mundo.
Pode ser difícil fazer mudanças radicais no nosso modo de vida, mas se cada um puder melhorar um pouco, podemos, sim, obter imensos resultados. O racionamento de energia pós-apagão alguns anos atrás mostrou com que facilidade foi possível, para a maioria das pessoas, reduzir o consumo de energia em 20%. Na maioria dos casos, bastou cortar desperdícios óbvios. Infelizmente, essa redução não se deveu à consciência das pessoas, mas às multas, pois assim que passou o racionamento, o consumo voltou a subir. De qualquer forma o episódio mostrou claramente que reduzir 20% de todo o consumo residencial de energia do país é relativamente fácil. Por que não tentar fazer isso de novo, agora por perceber que é importante, e não apenas pelo medo da multa?
Prós e contras da auto-ilusão
Precisamos, é claro, eleger líderes melhores – mas não podemos depender só deles. Nesse ponto cabe notar que a auto-ilusão existe porque tem, sim, um papel importante e útil em nossas vidas. Ao nos eximir de olhar para as consequências ruins de nossos próprios atos, a auto-ilusão nos ajuda a lidar com tais lados desagradáveis da realidade. Nesse sentido, então, nos protege, como uma boa maneira de ficar mais tranquilos diante dos problemas. Mas por isso mesmo, é também uma excelente maneira de não resolver os problemas.
O que a gente quer afinal: nos anestesiar dos problemas ou resolvê-los? Nesse momento da história, trata-se de uma escolha crucial; mas não é uma escolha fácil. Caetano estava certo na inspirada Terra: para que possamos dar o carinho que o nosso combalido planeta e todos seus habitantes precisam, é preciso mesmo coragem.
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