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O desvalor das diversidades biológicas e culturais

Diversidade biológica e diversidade cultural caminham juntas. E ambas estão em extinção. Para mudar as relações humanas, será preciso uma nova educação.

27 de setembro de 2005 · 19 anos atrás
  • Suzana Padua

    Doutora em educação ambiental, presidente do IPÊ - Instituto de Pesquisas Ecológicas, fellow da Ashoka, líder Avina e Empreen...

O Brasil, apesar de ser um dos líderes de biodiversidade no mundo, não valoriza o que tem e conseqüentemente sofre grandes processos destrutivos. O que se observa em sua história é o dilapidar de um patrimônio natural de grande riqueza, em função de interesses que não priorizam as necessidades nacionais.

O país tem dirigido sua produção para atender mercados externos cujas demandas variam de acordo com a época. José Augusto Pádua (também colunista do O Eco) já em 1987 escreveu um artigo que descreve os ciclos econômicos da história brasileira, assinalando as contínuas perdas e conseqüentes desastres causados pela devastação da natureza, decorrentes de um modelo extrativista predatório e insustentável, voltado ao mercado internacional. Conforme demonstra o autor, o próprio nome do país acabou sendo trocado por um produto natural, o pau-brasil, “o primeiro elemento da natureza brasileira, passível de ser explorado em larga escala para beneficiar o mercantilismo europeu”. O produto comercial, portanto, acabou se tornando mais importante do que os nomes religiosos que previamente intitulavam o país: Santa Cruz e Vera Cruz.

Perdas similares se deram no campo da cultura. Darrell Posey, que trabalhou no Brasil anos a fio, em 1998 publicou um estudo sobre a diversidade étnica e cultural existente no mundo e concluiu que das seis mil línguas faladas no planeta, entre quatro e cinco mil encontram-se em países de “megadiversidade”. O autor afirma que 60% das línguas faladas estão concentradas em nove países, dos quais seis contêm 60% da diversidade biológica do planeta. Há, portanto, uma correlação entre diversidade cultural e biológica, que passa a ser mais evidenciada com as perdas observadas nos últimos séculos, principalmente como conseqüência do modelo capitalista de desenvolvimento.

O historiador inglês Clive Ponting analisou minuciosamente o desmantelamento e a descaracterização de culturas e etnias em todo o mundo colonizado, decorrentes da invasão de um modelo de desenvolvimento predatório. No Brasil, o autor chama a atenção para a redução das populações indígenas, que somavam aproximadamente 2,5 milhões de indivíduos quando os europeus chegaram em 1500. Atualmente, esse número é inferior a 200 mil, sendo que as perdas ocorridas no último século continuaram sendo inestimáveis. A metade dos grupos étnicos existentes em 1900 se extinguiu e, segundo o autor, não há indicações dessa tendência reduzir.

De fato, dados atuais do Instituto Socioambiental (ISA) mostram que até meados dos anos 70 acreditava-se no desaparecimento dos povos indígenas como algo inevitável. Nos anos 80, no entanto, verificou-se uma tendência de reversão da curva demográfica e, desde então, a população indígena no país tem crescido de forma constante, indicando uma retomada demográfica por parte da maioria desses povos. Os dados mostram que os mais de 200 povos indígenas contemporâneos no Brasil somam cerca de 370 mil pessoas, o correspondente aproximado a 0,2% da população total do país. Este, porém, é assunto sujeito a diferentes estimativas, segundo o próprio ISA. Mesmo com esse percentual modesto, a diversidade cultural encontrada é inegável, existindo mais de 200 povos indígenas distintos no país. O valor cultural desses grupos se evidencia por conhecimentos adquiridos por meio do convívio com a natureza e da utilização dos recursos naturais encontrados regionalmente. Muitos desses conhecimentos tradicionais têm sido foco de atenção por parte do mundo desenvolvido, que busca sua apropriação para a fabricação de remédios, alimentos e bens de consumo em geral.

O desrespeito às culturas tradicionais e os impactos à diversidade biológica parecem estar intimamente ligados. Na medida em que o sistema econômico dominante não valoriza as diversidades socioambientais, uma minoria passa a ditar as regras em um processo que contribui para concentrar os conhecimentos, os recursos e o poder.

É essa postura de superioridade que faz com que certas culturas se sintam em posição de domínio sobre outras ou sobre os demais seres da natureza que precisa ser transformada. Já é chegada a hora de se praticar respeito, empatia e celebração das diversidades, de modo a dar ao planeta maiores chances de sobreviver e de garantir a perpetuidade das riquezas que herdamos. Sem dúvida trata-se de um novo olhar à própria vida.

É necessária uma mudança na qualidade das relações. Vale a pena relembrar os ensinamentos do pensador alemão Martin Buber, cujas idéias simples contêm grande profundidade. Segundo Buber, as relações caracterizam-se principalmente em dois tipos: Eu-Tu ou Eu-Isso. O Eu-Tu é quando uma pessoa reconhece a outra em sua integridade, com qualidades e defeitos e com seus traços únicos. Nesse tipo de relação, ninguém quer convencer o outro a ser diferente. A troca é verdadeira e um ser se enriquece com o outro, celebrando as diferenças. Já no Eu-Isso, as pessoas não se apercebem das outras. Muito ao contrário, uns se aproveitam dos serviços que os outros proporcionam, mas não há a percepção da integridade do outro.

A mesma abordagem pode ser aplicada às relações com a natureza. Na medida em que o ser humano percebe o valor da vida em geral, manifesta em outras espécies e ecossistemas, o respeito passa a ser mais facilmente incorporado nas posturas e comportamentos. Rubem Alves uma vez mencionou que havia tido uma relação Eu-Tu com uma arvore de ipê amarelo em flor. São estes momentos mágicos que, quem sabe, ajudam a mudar nossa percepção. Mais uma razão para proteger efetivamente nossa natureza tão inspiradora.

Educação é um caminho. Mas a educação com base no respeito às diversidades precisa de fato ser quase que inventada. O modelo tradicional de educar não responde às necessidades do mundo, devido à aceleração das mudanças, ao agravamento das diferenças sociais, às perdas naturais e outras crises. Os caminhos podem não estar definidos, mas a busca é fundamental. Precisamos questionar o passado, ousar mudar e, se errarmos, estarmos prontos a nos perdoar e a novamente querer ajustar para melhorar. Não há receitas prontas, e é por isso que tentar ainda é a melhor e talvez a única opção, pois aí teremos pelo menos 50% de chance acertar.

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