Da janela de meu apartamento no centro de São Paulo é comum ver um ou mais Carcarás (Caracara plancus) pela área à caça de pombos e outras oportunidades gastronômicas. Parentes próximos dos falcões – aqueles soberbos caçadores aéreos – os Carcarás são um grupo exclusivamente americano que evoluiu por caminhos diferentes.
Carcarás que pegam-matam-e-comem são presença comum na maior parte do país. Como vejo de minha janela, sua adaptabilidade e inteligência permitiram que se ocupassem todos os habitats no continente e aprendessem a aproveitar oportunidades criadas por nós.
Carcarás podem ser vistos nos arredores de lixões caçando ratos e pombos, seguindo máquinas agrícolas que espantam pequenos animais e patrulhando rodovias para aproveitar a safra diária de animais atropelados. São fregueses das queimadas que cremam o país graças a nossa piromania e fazem caminhadas nas praias aproveitando o lixo dos farofeiros e os peixes mortos pela poluição.
Carcarás também não perdem tempo em arrancar os olhos, tripas e o que for possível de animais vulneráveis, de galinhas a bezerros recém-nascidos, agradecidos por darmos bobeira.
São os rapinantes mais adaptáveis, não recusando refeições vivas ou mortas. Bichos de personalidade, inteligentes e ocasionalmente cômicos, são um exemplo de sucesso e dos meus preferidos.
Quando Darwin explorou o sul do nosso continente em 1832 ele encontrou carcarás muitas vezes e lembrava que “os seus hábitos rapinantes e necrófagos são bastante evidentes a todo aquele que se deixa adormecer nas planícies da Patagônia, pois ao acordar vê em cima de cada colina uma ave a espreitá-lo pacientemente com um olhar maligno”.
O plancus, encontrado da Terra do Fogo à Amazônia, é uma das duas espécies vivas de carcarás, sua espécie-irmã C. cheriway ocorrendo do norte da Amazônia (onde se encontra e hibridiza com o plancus) ao sul do Estados Unidos.
Nem sempre foi assim. A família já foi muito maior e se os povos ameríndios não tivessem causado uma das maiores extinções em massa ao ocuparem as Américas é possível que a experiência de Darwin tivesse sido mais radical.
Em um continente onde dominavam mamíferos de grande porte que humilhariam a África atual, também pululavam aves associadas aos mesmos e tiveram o mesmo destino. Incluindo necrófagos como Condores-andinos (Vultur gryphus) – que não muito tempo atrás ocorria no Brasil –, condores de bolso (veja aqui e aqui) e necro-urubus.
E, obviamente, carcarás. O Pampa e Patagônia explorados por Darwin eram o lar do Carcará Rex (Caracara major), o maior falconídeo que sabemos ter existido.
Pesando estimados 4,8 kg, esse carcará era muito maior que os atuais, que não chegam a 1,5 kg. Se tivessem a curiosidade e atrevimento dos parentes vivos, é de se imaginar a surpresa que esperava alguém que dormisse demais a céu aberto.
Os restos do Caracarás Rex foram escavados de sedimentos datados do final do Pleistoceno, o período quando humanos completavam a ocupação final do continente e a extinção da megafauna era um processo adiantado. O pequeno C. seymori do Equador e Peru também foi extinto no mesmo período.
As grandes ilhas do Caribe foram poupadas da ocupação humana por milhares de anos após os ameríndios terem eliminado a megafauna no continente. Os primeiros humanos só se estabeleceram em lugares como Cuba, Hispaniola, Porto Rico e Jamaica a partir de 5 mil anos atrás e, como resultado, estas ilhas mantiveram sua fauna original até períodos muito mais recentes.
Além de preguiças-gigantes, hutias, macacos e outros bichos dos quais só restam ossos, os invasores humanos levaram à extinção uma insuspeita diversidade de carcarás. Em Cuba e Porto Rico desapareceu o misterioso Caracara latebrosus. Nas Bahamas e Cuba, o pequeno C. creightoni. Na Jamaica o exótico C. lellustris, que parece ter sido incapaz de voar e caçava a pé.
Como no continente, outras aves associadas à megafauna também desapareceram, incluindo um parente cubano do Condor-da-california e primos (veja aqui e aqui) do nosso Gavião-carrapateiro (Milvago chimachima), uma espécie com nome que mostra suas interações com a megafauna ainda existente.
Os detalhes dessas extinções estão perdidos no tempo e não é possível ir além da constatação de que povos pré-industriais e pré-capitalistas vivendo em cacicados foram capazes de tragédias ambientais dignas do capitalismo selvagem. E que negaram oportunidades a quem veio depois.
Mas a história do Carcará-de-guadalupe Caracara lutosus, a última espécie a ser extinta, é bem conhecida.
Guadalupe, 241 quilômetros fora da costa oeste de Baja California, México, é conhecida como um dos mais incríveis locais para mergulho com tubarões-brancos, como a impressionante Deep Blue.
Também é uma Reserva da Biosfera, categoria de “área protegida” popular no México, o que implica que a área continua sendo utilizada por pescadores de uma cooperativa dedicada à pesca de lagostas e abalones.
Cabras foram introduzidas em Guadalupe ao redor de 1850, seguidas por camundongos e gatos. A ideia era alimentar marinheiros e os empregados na indústria do extermínio das endêmicas focas-de-guadalupe Arctocephalus townsendi e das focas-elephante Mirounga angustirostris, exploradas pelo óleo e peles.
O massacre durou até os 1890, quando restavam talvez 15 focas-de-guadalupe e menos de 100 focas-elefante. Protegidas estas espécies se recuperaram ao longo do século passado (para alegria dos tubarões) mas mostram as cicatrizes genéticas daqueles tempos ruins (veja aqui e aqui).
As cabras introduzidas chegaram a 100 mil por 1870 e causaram danos tremendos à flora da ilha, espécies endêmicas sendo extintas e os bosques reduzidos a cacos. Os gatos, por sua vez, foram instrumentais na extinção de aves endêmicas.
Em 1928, a ilha se tornou uma reserva mas as cabras só foram finalmente erradicadas em 2007 graças aos esforços de uma ONG. Os gatos também foram objeto de um programa de erradicação que pode ter obtido sucesso ano passado. A ilha caminha para a restauração possível.
De fazer inveja à ruína ecológica que é Fernando de Noronha, ocupada por pragas como ratos, teiús, mocós, gatos e cães que as “autoridades” são covardes demais para erradicar.
Entre as aves endêmicas de Guadalupe estava o C. luctuosa ou Calalie. Predador e necrófago como seus parentes, esse carcará provavelmente dependia das colônias de focas e aves marinhas para se alimentar.
A introdução das cabras ofereceu uma nova oportunidade que se tornou importante conforme as focas foram dizimadas. Os registros da época falam como grupos de Calalies matavam cabritos mesmo nas portas das casas. Os moradores, bons ruralistas que eram, não perdiam tempo em matar as aves sempre que podiam.
Assim, os Calalies foram se tornando cada vez mais escassos.
O capítulo final aconteceu em 1900. Na ilha estava Rollo Beck, coletor profissional de espécimes para museus famoso por ter obtido os primeiros espécimes de espécies até então desconhecidas, incluindo o único exemplar conhecido da tartaruga-de-fernandina (Chelonoidis fantastica), uma das 256 tartarugas das Galápagos mortas pela expedição da California Academy of Sciences criada com o objetivo de “estudar” as tartarugas gigantes das “ilhas de Darwin” antes que fossem extintas.
Nas palavras de Beck:
“Embora naquele momento eu não tivesse ideia, parece provável que obtive os últimos Carcarás-de-guadalupe na ilha de Guadalupe na tarde de 1 de dezembro de 1900. De 11 aves que voaram em minha direção, 9 foram obtidas. Os outros dois foram atingidos mas escaparam. As 11 aves foram todas as que vimos mas julgando pela sua mansidão e o pouco tempo que ficamos na ilha assumi na época que a espécie era abundante. Todas as peles foram enviadas com meu material das Galápagos para Lord Rothschild na Inglaterra”.
Do Carcará-de-guadalupe restam cerca de 40 peles em alguns museus, além de alguns ovos e outros restos.
Pouco depois da visita de Beck Guadalupe foi abandonada por seus ocupantes humanos, já que a economia local se tornou insustentável. Se aqueles 11 carcarás fossem os últimos de sua espécie é possível que a espécie tivesse se recuperado e ainda estivesse por lá. Afinal, espécies como o Black Robin e o Falcão-de-mauritius (Falco punctatus) – conseguiram se recuperar a partir de 5 e 4 indivíduos, respectivamente (embora continuem ameaçadas).
Podemos apenas desconfiar sobre as motivações e atos das pessoas que levaram à extinção do Carcará Rex e seus parentes desaparecidos. Extinções que obliteraram linhas evolutivas que poderiam levar a caminhos ainda mais espantosos, e maravilhosos, que carcarás gigantes que correm atrás de suas presas.
Mas desconfio que, como no caso do Carcará-de-guadalupe e tantas outras espécies, essas extinções não eram nem pré-ordenadas nem necessárias para obter-se o chamado progresso.
Foram apenas o preço desnecessário da ganância, relaxo, falta de respeito e de cuidado com que humanos – dos pré aos pós capitalistas – tratam a vida no único planeta que podem habitar e a sacrificam em troca de economias fadadas ao colapso.
Cerca de 6 bilhões de pessoas vivem em países onde carcarás humanos arrancam os olhos e tripas de sociedades onde as instituições públicas são servidas pela sociedade ao invés de servi-la. O Brasil, 96º (e caindo) em um ranking de 180 países, vive a maldição de um eleitorado que gosta de reeleger corruptos.
E de um Supremo – o tal guardião da Constituição – que, ao contrário de Rollo Beck, parece não ter a menor intenção de extinguir seus amigos carcarás.
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"Fernando de Noronha, ocupada por pragas como ratos, teiús, mocós, gatos e cães que as “autoridades” são covardes demais para erradicar."
O intrépido colunista formulou representação ao MPF?
Na parte da ciência o autor escreve bem. Mas na parte política e econômica só clichê. Parece que o cidadão acha que capitalismo é um sistema de governo.
Carcará de guadalupe, uma das muitas aves de rapina vítimas da insistência que o pecuarista tem de defender o próprio patrimônio na bala.
Ai voltamos ao antiguissimo problema. Quando é que se vai discutir sobre as reais causa da extincao das especies.
As exticoes no passado e no presente . Extincoes causadas pela expansao descontrolada de tal expecie humana , isso sim uma Praga nefasta.
Adendo: o tema "coleta" é abordado no capítulo 4, e não em todo o livro como minha frase dá a entender. 🙂
Excelente texto, pra variar. Lembrei do livro "A bird in the bush", de Stephen Moss, onde o autor descreve com detalhes a febre de coletas no período Vitoriano e os excessos que se cometiam em nome de coleções particulares e também para Museus. Uma competição idiota e vaidosa para exibir animais mortos, ainda que isso levasse espécies à extinção, como de fato aconteceu a muitas delas.
Felizmente essa "necessidade" de coleta está diminuindo, as pessoas entenderam finalmente que animais vivos ensinam muito mais que carcaças. E assim como você, desejo arduamente que todos tenhamos mais consciência ambiental na hora do voto, porque já basta o desastre causado nos últimos anos com políticas equivocadas e irresponsáveis.
Parabéns Olmos. Mais uma aula de categoria.
Parabéns pelo texto, um primor na arte da divulgação da ciência.
Pois é, a tal Luisa Mell manda mais que as tais "autoridades" ambientais