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Unidades de confusão

A enorme variedade de categorias das áreas de preservação ambiental no Brasil só serve para confundir a todos e dificultar a adoção de políticas eficientes.

28 de julho de 2005 · 19 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Parece que alguns ambientalistas se deleitam, complicando a vida dos leigos e, ao mesmo tempo, a deles mesmos. A melhor expressão dessa tendência é a vasta nomenclatura das unidades de conservação. Em outros países, são conhecidas como áreas protegidas, para as quais, no mundo, existem centenas de nomes com significados iguais, ou sutilmente diferentes. Num país só, como o Brasil, existem treze denominações federais e muitas outras nos níveis estadual e municipal. O resultado é uma gigantesca confusão perante a opinião pública com conseqüências que, em geral, reúnem o cômico com o trágico.

Será possível que algum leitor ou leitora, que não seja um verdadeiro especialista, consiga saber quais são as diferenças entre uma área de preservação permanente ou APP (que não é uma unidade de conservação), uma área de proteção ambiental (APA) ou uma área de relevante interesse ecológico (ARIE)? Será que esses leitores podem compreender a diferença entre uma reserva de desenvolvimento sustentável (RDS) e uma reserva extrativista (RESEX)? Será que algum outro ou outra pode explicar quais são as diferenças entre um parque nacional (PARNA), uma reserva biológica (REBIO) e uma estação ecológica (EE)? Tampouco será fácil que alguém saiba o que são as reservas de fauna, se comparadas aos refúgios de vida silvestre. A consternação pode ser total. Além destas, somam-se às reservas particulares de patrimônio natural (RPPNs), às misteriosas e internacionais reservas de biosfera, que cobrem mais de 60 milhões de hectares no país e aos sítios de patrimônio natural mundial, as dezenas de denominações exclusivamente estaduais -por exemplo, estradas parque e rios cênicos- e, pior ainda, o fato de que a maior parte dessas denominações devem ser multiplicadas por dois e até por três, quando o termo “nacional” é substituído pelo”estadual” ou pelo “municipal”.

Na verdade, também existem outros tipos de unidades, dependentes de outros setores, como as áreas de relevante interesse turístico e os assentamentos extrativistas. Também, devem se mencionar as muito importante reservas indígenas e os antiquados, ainda que legalmente sobreviventes, “parques indígenas”, que são da competência da Fundação do Índio (FUNAI). Não devemos esquecer, que muitos personagens importantes no cenário nacional usam termos que legalmente até nem existem mais, como horto florestal, para se referir a florestas nacionais ou estaduais.

Poder-se-ia pensar que a leitura cuidadosa das discrições legais dessas categorias trouxesse esclarecimentos. Pois, em muitos casos, não é assim. Várias dessas categorias simplesmente duplicam outras e não têm nenhuma razão de ser, como Maria Tereza Jorge Pádua explicou no artigo “Análise crítica da nova lei do Sistema de Unidades de Conservação da Natureza do Brasil” (Revista de Direito Ambiental, São Paulo, volume 21, janeiro-março, 2001), comentando a então nova Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC).

Na verdade, ninguém consegue se entender no meio dessa parafernália de termos, alguns evidentemente necessários para o ordenamento do território, embora, na sua maioria, sejam completamente fúteis. Poucos conseguem distinguir o joio do trigo e muitos, bem intencionados membros da sociedade, organizada ou não, aplicam esforços enormes para a defesa de unidades de conservação de categorias sem valor ambiental, nem tampouco social. Outros, os menos bem intencionados, se empenham em lutas bravias para evitar o estabelecimento de unidades de conservação que não os prejudicariam em nada, como as reservas de biosfera e as APAs e, quiçá o pior de tudo, é que devido a essa proliferação de categorias, os governos espalham a miséria orçamentária sobre áreas enormes, muitas das quais não mereceriam receber nem um centavo, enquanto as que são realmente importantes carecem do essencial.

Apenas um exemplo para ilustrar este ponto de vista. Recentemente, o estado do Tocantins apresentou uma proposta para reduzir a Área de Proteção Ambiental Ilha do Bananal-Cantão, estabelecida em 1997. De seus atuais 1,7 milhões de hectares, quase todos desmatados e sem valor ecológico, a área seria reduzida a um tamanho bem menor, controlável, e que responde à necessidade de estabelecer uma zona de amortecimento para o Parque Estadual do Cantão, que é uma pequena jóia. Para espanto dos conhecedores, a reação da sociedade civil e do Ministério Público, foi violentamente contrária, ocupando muitas páginas dos meios de comunicação e determinando ações legais contra o Estado. Os argumentos dos que se opunham à proposta do Estado claramente confundiam o que é um parque nacional ou estadual, com uma área de proteção ambiental, sem levar em consideração a importância ecológica e social relativa a ambas as categorias. As APAs são “unidades de conservação” quase sem valor ambiental. Nelas, os proprietários podem fazer tudo o que se faz em qualquer outro canto do país e o poder público só pode fazer cumprir a lei que se aplica em outros lugares, pois as terras estão em mãos de particulares. Os parques nacionais ou estaduais, por outro lado, são terras públicas, dedicadas por completo a preservar uma amostra da natureza. Extinguir ou reduzir uma APA, em especial uma como a do caso mencionado, que não servia para nada, é uma boa decisão.

Mas, reduzir ou eliminar uma reserva biológica ou um parque é um desastre e deve ser combatido. Mas, antes é preciso saber a diferença: Não é a mesma coisa quando o Governo do Estado do Mato Grosso elimina parques estaduais e o Governo do Estado do Tocantins reduz uma área de proteção ambiental. Não merece o mesmo aplauso que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), quando este amplia com plantações decrépitas de eucalipto a Floresta Nacional de Brasília e o Parque Nacional de Brasília (o que é realmente transcendente).

A leitura dos meios de comunicação resulta na evidência de que essas confusões são uma constante. E essa situação é muito fácil de se compreender, levando-se em conta que, como dito, nem os especialistas se entendem entre eles. O fato é que as categorias de unidades de conservação do Brasil, ainda que neste país existam muito menos que em outros, poderiam ser reduzidas à metade, facilitando a vida de todo mundo. Dentre as categorias federais desnecessárias figura, pelo menos, estação ecológica, refúgio de vida silvestre, área de relevante interesse ecológico e reserva de desenvolvimento sustentável. As supostas funções dessas categorias podem, perfeitamente, serem assimiladas através do zoneamento das unidades de conservação em outras existentes. Os parques podem, e de fato cumprem funções de estação ecológica e, na verdade, também de reserva biológica.

Nos parques, existem zonas para proteção absoluta e também zonas nas quais pode ser feita pesquisa. A diferença entre área de relevante interesse ecológico e área de proteção ambiental é fantasiosa e ambas podem receber a mesma denominação. Num país onde não é possível manejar a fauna silvestre porque a caça está de fato proibida, não existe nenhuma diferença entre reserva de fauna e refúgio de vida silvestre. Basta existir uma dessas categorias. Do mesmo modo, não existe razão para se ter, ao mesmo tempo, reservas de desenvolvimento sustentável e reservas extrativistas. Ambas são o mesmo, dependendo apenas, outra vez, de estabelecer zonas de manejo dentro delas. E, do jeito que as coisas vão, hoje uma floresta nacional, onde também podem residir populações tradicionais, se parece tanto com uma reserva extrativista, onde até se permite extração de madeira, que tampouco se entende porque existem as duas simultaneamente.

A legislação recente, copiando modas internacionais, aumentou a confusão reunindo, sob o termo “unidades de conservação”, áreas que até uma década atrás não se apresentavam juntas. Nunca antes se tinha denominado as florestas nacionais como unidades de conservação, pois sua função primária é o “uso múltiplo e sustentável dos recursos florestais”, eufemismo para dizer “produzir madeira”. Na maior parte da América Latina, como nos Estados Unidos ou no Canadá, as florestas nacionais não são consideradas unidades de conservação, ainda se, bem manejadas, evidentemente contribuem para a preservação. Mas, “contribuir” com a preservação da natureza é apenas um papel secundário. O mesmo pode se dizer de uma reserva extrativista. O caso das áreas de proteção ambiental é diferente. Por um lado, é óbvio que elas, por definição própria, protegem pouco ou nada, pois são uma categoria mais fraca. Não obstante, existem casos em que são a única alternativa disponível para construir os corredores biológicos ou ecológicos, usadas como cimento que une as pedras fundamentais do alicerce, que são as unidades de conservação verdadeiras.

Assim, o cenário seria simplificado, tirando dele, ainda, as categorias internacionais, na sua maioria, tão vãs como proporcionalmente inúteis. Os cidadãos poderiam começar a compreender e participar melhor da tarefa de conservar o patrimônio natural. Pelo menos, saber-se-ia do que se fala, quando um governo, seja federal ou estadual, anuncia, no Dia Mundial do Meio Ambiente de cada ano, mais milhões de “hectares protegidos”. Se forem áreas de proteção ambiental, áreas de relevante interesse ecológico ou reservas de biosfera, saber que isso é, em muitos casos, apenas “para inglês ver”. Se anunciarem florestas nacionais, reservas extrativistas ou reservas de desenvolvimento sustentável, saber que isso é apenas para explorar mais e melhor. E, nesse caso, só aplaudir o estabelecimento de unidades de conservação de verdade. Separar-se-ia o joio do trigo.

Deve -se reconhecer que grande parte da responsabilidade pela confusão vigente é internacional. A Comissão Mundial de Áreas Protegidas (WCPA, na sigla em inglês da União Internacional) para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês), está encarregada há mais de meio século de sugerir certo ordenamento comparativo no uso de categorias de áreas protegidas, baseado em critérios científicos e técnicos. O prêmio para os países e as áreas protegidas que respeitam as pautas é ser periodicamente citado na Lista das Áreas Protegidas das Nações Unidas, que a WCPA é responsável de preparar. O crédito é dado às verdadeiras cumpridoras de seu papel e, dessa forma, estimula outros países a cumprir requisitos mínimos de qualidade de manejo. Lamentavelmente, esta entidade, cada vez mais politizada e procurando comprazer a todos, tem jogado ainda mais lenha na fogueira, tornando relativas até extremos risíveis, as definições de suas categorias estandardizadas.

Outra agência internacional, as Organizações das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), que há várias décadas lançou um interessante programa de pesquisa científica comparada (o Programa do Homem e a Biosfera, ou MAB) com base nas reservas da biosfera, caiu na tentação de promovê-las como unidades de conservação, aumentando a confusão.

Levará muito tempo para que o cenário das unidades de conservação se clarifique, no Brasil e em outras partes do mundo. Por isso, por enquanto, é recomendável lembrar que as unidades de conservação são, na verdade, apenas unidades de confusão. A única alternativa é ter o olho bem aberto e analisar cuidadosamente cada caso.

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