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Fim dos fósseis de Kyoto?

Está mudando a atitude dos países que mais impediram avanços na política global do clima: EUA, Canadá e Austrália. O Brasil arrisca ficar só na posição de fóssil de Kyoto.

5 de janeiro de 2007 · 17 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

Ao se opor a avanços substantivos na definição de parâmetros novos sobre emissões de gases estufa para orientar o acordo pós-Kyoto, isto é, para depois do fim da vigência do Protocolo de Kyoto, em 2012, a comitiva brasileira não estava só na reunião de Nairobi, no final do ano passado. Essa era, também, a posição dos governos do EUA, do Canadá e da Austrália. Índia e China vêm deixando o Brasil defender as posições mais atrasadas na política do clima por conveniência. Apontados como os vilões do clima no Século XXI, para eles é melhor que outros defendam o status quo.

Quando chegar a Bali, no final deste ano, para mais uma reunião da Convenção do Clima e do Protocolo de Kyoto, a comitiva brasileira pode ficar falando sozinha, se não mudar de opinião. É que, dos “quatro fósseis” de Nairobi, EUA, Canadá e Austrália, estão dando sinais de que mudarão de posição. A menção aos quatro fósseis tem a ver com a indicação pela ONG Climate Action Network – CAN, em toda reunião da Convenção do Clima, daqueles países que mais contribuíram para o impasse. Em Nairobi, Estados Unidos, Canadá, Austrália e Brasil foram os “fósseis” mais destacados.

A Austrália vem enfrentando sua própria tragédia climática há três anos, com uma seca violenta e períodos, como agora, de chuvas pesadas e furacões, em outras regiões do país. Como nos EUA, os cientistas australianos já formaram consenso sob os riscos da mudança climática para o país. Como nos EUA e no Canadá a opinião pública quer ação rápida e eficaz do governo e das empresas para enfrentar a mudança do clima. Nesses países a pressão política está forçando os governos a mudarem. No Canadá e na Austrália, se não mudarem serão substituídos pela oposição, em novas eleições.

Nos Estados Unidos, a mudança eleitoral já começou a surtir efeito. A derrota de Bush nas eleições intermediárias, ano passado, que deram o controle das duas Casas do Congresso ao partido Democrata, já fez o presidente anunciar mudanças nas suas políticas em relação ao Iraque e ao clima. O próximo presidente, que assumirá em 2010, não repetirá a política de Bush na área do meio ambiente. É pouco provável que o EUA mude de política em relação ao Protocolo de Kyoto, mas mudará, muito provavelmente, em relação ao “pós-Kyoto”, que é o que conta mais.

100 horas para pensar

Quando a democrata Nancy Pelosi, uma californiana magrinha de 66 anos, subiu ao púlpito do plenário da Câmara dos Deputados, em Capitol Hill, para fazer seu discurso de posse, fez história, gostem dela ou não. Foi a primeira vez que aquele plenário ouviu a voz de uma mulher falando na qualidade de presidente efetiva daquela casa de representantes, que começou a funcionar em 1789. Pelosi é controvertida. Não é nenhuma revolucionária. Mas fez o que prometeu a seus eleitores e ao país. Apresentou uma agenda clara de ação, na qual a questão ambiental ocupa posição de importância. Os Democratas estão em um mutirão legislativo de 100 horas para marcar rapidamente a diferença que sua maioria pode fazer.

Ela propôs uma “nova América que declare a independência energética, promova fontes domésticas de energia renovável e combata a mudança climática”.

Ao mesmo tempo, o líder da maioria no Senado – a presidência do Senado, no EUA, é exercida pelo vice-presidente da República – senador Harry Reid, um democrata do estado de Nevada, apresentou ao plenário um “marker” (sinalizador), que vem a ser um quadro de referências para o que, segundo diz a mensagem, pode ser chamado de “Energy and Environmental Security Act of 2007”. É um plano de legislação que pede ao Congresso que aprove reduções obrigatórias de emissões de gases estufa, estimule a diversificação da matriz energética, com a inclusão de fontes de energia e tecnologias seguras, limpas e eficientes e elimine os subsídios a grandes empresas de energia, entre outras providências.

Não será nada espetacular, mas será melhor do que está. Esses dois discursos foram o tiro de saída para uma intensa atividade de bastidores, com vários congressistas, isoladamente ou em grupo, anunciando projetos de leis sobre o clima, uso e tecnologias de energia. Um dos projetos anunciados, mas ainda não apresentado, deixou a indústria de etanol eufórica: ele proporá que a indústria automobilística aumente gradualmente a produção de carros flex-fuel, para que em 2010 toda a frota de novos veículos possa usar gasolina com até 85% de etanol. O projeto também determinará que aumente o número de postos em todo os país com bombas com o E85, essa gasolina com 85% de etanol. A idéia, vejam só, é que até 2010 metade dos postos do país estejam vendendo o E85. É por isso que o álcool brasileiro faz tanto sucesso. Aqui, os carros flex-fuel podem usar 100% de etanol e praticamente todos os postos brasileiros vendem álcool.

Outra idéia que aparece no sinalizador do líder democrata no Senado e pode estar presente em vários outros projetos, é o de acabar com o subsídio que Bush criou para as grandes empresas de petróleo e ainda cobrar royalties pela exploração em território nacional. A receita constituiria um fundo de promoção de energias limpas. A idéia parece ter apoio da maioria, inclusive entre republicanos. O senador democrata por New York, Charles Schumer, previu que essa medida terá boa acolhida no Senado. “As empresas de petróleo estão tendo lucros recorde. Se elas tiram óleo de terras federais, têm que pagar por isso e acho que esse será o sentimento não só de democratas, de um grande número de republicanos”.

Os republicanos que não compartilham o auto-denominado “ceticismo climático,” livres da linha-dura da maioria republicana de Bush, andam botando as manguinhas de fora. David Hobson, deputado republicano por Ohio, influente membro do Comitê de Finanças para Energia e Água, disse, na instalação da nova legislatura, que estava esperando a saída dos republicanos de Bush, para se juntar àqueles que querem mudar a política de energia. “Eu verei com muito interesse o projeto. Na minha opinião estamos de 20 a 25 anos atrasados em política de energia”.

Nem tudo é espetacular, embora o próprio Bush esteja dando sinais de mudança de política no clima. Alguns de seus principais auxiliares estão prometendo grandes surpresas. Pode ser. Em reunião recente com a primeira-ministra alemã, Angela Merkl, que assumiu a presidência do G-8 e da União Européia para os próximos dois anos, ele se comprometeu a cooperar na definição de um acordo pós-Kyoto. Mas, não dá ainda para acreditar em mudanças do dia para a noite. É só ver como Bush, após prometer mudanças na política para o Iraque, se comportou na execução de Saddam Hussein.

Mas a pressão agora está vindo mesmo do lado da mudança. Pressão da opinião pública e, com a nova maioria democrata, pressão política. Um dos problemas é que os democratas ainda não tiveram tempo para formar consenso sobre o que realmente querem aprovar como políticas para o clima. No caso do fim dos subsídios do petróleo e cobrança de royalties, a maioria aprova, mas não consegue se entender sobre que destino dar aos recursos do fundo. Uns querem deixar energia nuclear de fora, outros querem incluí-la. Uns querem dar primazia ao financiamento de pesquisas para desenvolvimento de tecnologias que permitem escala, como fusão nuclear e energia solar. Outros querem privilegiar tecnologias de desenvolvimento mais rápido, como de biocombustíveis e solar.

A reação também já começou: a presidente da Câmara Americana de Comércio, Thomas Donohue, anunciou a criação de um novo lobby, o Instituto para Segurança de Energia, Empregos e Competitividade. Claramente, seu objetivo será atuar para evitar que o Congresso aprove uma lei de quota e crédito (cap and trade) de emissões de carbono que, segundo ele, “mataria a economia”. Donohue reconhece que “há evidência de que estamos emitindo gases estufa e o mundo está esquentando”. Já é alguma coisa. Mas ele diz que os gases estufa têm que ser “administrados com sensatez”. Dá para imaginar o que seja isso.

O fato é que nos últimos cinco anos o EUA viveu forte retrocesso na questão ambiental e na política do clima e agora, o movimento está sendo revertido e as coisas começam a andar para a frente. O ritmo e a profundidade da mudança dependerão de uma correlação de forças que tem de um lado, a pressão de uma sociedade civil cada vez mais preocupada e ativa e, de outro, o lobby de grandes e poderosas companhias.

Mudança preventiva

O primeiro ministro canadense, o ultra-conservador Stephen Harper, achou que enganaria a maioria com o “Clean Air Act” que apresentou, no ano passado, com muito estardalhaço, em resposta à crescente pressão dos eleitores por uma nova política do clima. Estava enganado. Não é mais possível enganar a opinião pública com palavreado, imaginando que as questões técnicas não serão compreendidas e tudo pode ser resolvido com uma boa conversa. Hoje há nas ONGs ambientais capacidade técnica suficiente para explicar o que está por trás das propostas governamentais. Cientistas independentes mantêm blogs no ar para informar a opinião pública e a mídia sobre as questões científicas e técnicas relativas ao clima. No mundo da informação, tudo pode ser examinado com precisão e independência. O projeto de Harper foi, por isso, recebido com frieza e muitas críticas. Ele, na verdade, reduzia significativamente as metas de redução de emissões de gases estufa no país.

Em Nairobi, no final do ano passado, a ministra do Meio Ambiente canadense, Rona Ambrose, se destacou como a mais agressiva e conservadora voz de oposição a qualquer avanço na direção de um acordo melhor, mais amplo e mais exigente sobre emissões de gases estufa, para valer no pós-Kyoto. Mas, ao voltar para casa, só teve tempo de comemorar o Natal e o Ano Novo. Esta semana, foi removida para outro posto ministerial pelo primeiro-ministro Harper, que anunciou não apenas uma reforma do gabinete, mas também uma mudança de atitude em relação ao clima. “Nós determinamos com clareza que precisamos fazer mais pelo meio-ambiente. Reconhecemos que particularmente no que diz respeito ao ar limpo e à mudança climática, os canadenses merecem muito mais”, disse ele. Certamente foi uma confissão de mal desempenho até agora. Com certeza, a causa dessa confissão foi a indignação dos canadenses com a postura de seu governo em Nairobi e o anúncio de que descumpriria as cotas com que o Canadá se comprometeu no âmbito do Protocolo de Kyoto. Não é possível dizer ainda, se por trás dessa declaração há uma nova agenda ambiental e para o clima.

Os analistas canadenses estão em dúvida. Harper nomeou para o lugar de Ambrose o até então chefe do Tesouro canadense, John Baird, um jovem político conservador, de 37 anos, conhecido por ser um agressivo formulador e gestor de políticas e contendor nas brigas interpartidárias, além de ser um bom comunicador político. Há consenso de que ele foi o escolhido por seus dotes de comunicação. O primeiro-ministro espera que seja mais efetivo debatedor na confronto sobre políticas ambientais com a oposição do que Ambrose. O que não se sabe por lá é se Harper está apostando na sua agressividade só nos embates da política partidária ou também quer sua firmeza a ousadia na implementação de novas políticas ambientais.

Harper fez a mudança de gabinete porque está sendo abandonado pela opinião pública canadense exatamente por causa de suas omissões em relação ao meio-ambiente. Na primavera canadense, ele enfrentará no Parlamento uma dura batalha pelo orçamento, que pode forçá-lo a convocar eleições. As pesquisas indicam e os analistas concordam que se não mudar substantivamente sua política para o clima, ele perderá a maioria para o partido Liberal, cujo novo líder, Stéphane Dion, já foi ministro do meio-ambiente e está se preparando para eleições em algum momento este ano ou no próximo, com uma plataforma ambientalista. As pesquisas de opinião pública tem o colocado à frente do primeiro-ministro nas preferências dos eleitores. Dion é tão favorável ao Protocolo de Kyoto e está tão comprometido com o pós-Kyoto, que seu cão se chama Kyoto.

É possível que Harper queira um pouco de tudo: boa comunicação, agressividade e eficácia nas negociações das mudanças que permitam a aprovação do seu Clean Air Act e duro combate a Dion. Ele parece saber que só na garganta não vai dar. Ele disse à imprensa neste final de semana, que convidou Baird também por seus dotes de comunicador, mas “o ministro Baird será o primeiro a lhes dizer que só comunicação não será suficiente, diante dos desafios que enfrentamos no meio-ambiente e com relação à mudança climática em particular”.

O governo anunciou, também, a criação de um novo comitê ministerial que terá por foco o meio-ambiente e a segurança energética e ficará encarregado de implementar o “Clean Air Act”, se Baird conseguir negociar mudanças que permitam sua aprovação. Como está, será derrubado. No comunicado, o governo diz que o “comitê buscará resultados práticos, soluções orientadas para resultados, para reduzir as emissões de gases estufa do Canadá, reduzir a poluição e melhorar a saúde e o bem-estar dos canadenses”. A ver.

As mudanças foram recebidas com “otimismo cauteloso” pelos ambientalistas, como definiu Bruce Cox, diretor-executivo do Greenpeace canadense. Stéphane Dion, como bom líder da oposição, não acredita em mudança de atitude no governo. “Mas se houver, vamos ajudar”, promete.

De novo, nenhuma revolução. Mas as coisas começaram a andar para frente, depois de muito retrocesso.

Se não houver mais mudança, os eleitores tratarão de mudar os governantes. São muitos e fortes os sinais de que a opinião pública não só tem consciência da gravidade do problema climático, como passou a conferir às políticas ambientais prioridade que não tinham no passado.

O Clube de Madrid, hoje presidido por Ricardo Lagos, ex-presidente do Chile, ONG que reúne mais de 60 ex-governantes de países importantes, entre eles, Gro Harlem Brundtland, Vaclav Havel, Bill Clinton, Lionel Jospin, Fernando Henrique Cardoso e Felipe González decidiu usar sua experiência e sua influência para colaborar na busca de um bom acordo para o pós-Kyoto. Constituiu uma força-tarefa de alto nível, presidida pelo próprio Lagos para buscar uma solução para o impasse político na Convenção do Clima.

É provável que ao longo deste ano e do próximo vejamos mais avanços. Um acordo pós-Kyoto satisfatório está começando a aparecer na tela como um resultado provável. O Brasil que se cuide. Vai segurar sozinho o troféu do último fóssil de Kyoto.

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