Após uma votação apertada e empatada [1] no Conselho Estadual de Meio Ambiente de Mato Grosso (Consema), a Secretaria do Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso (SEMA) se posicionou em favor da Usina Hidrelétrica (UHE) Paiaguá, dando seu voto de minerva pela concessão da licença prévia necessária. Projetada para gerar 28 MW, ela provocará o alagamento de 2.200 hectares afetando 19 km do rio do Sangue, na bacia do rio Juruena (MT). A construção ameaça diretamente uma das poucas áreas verdes que resistem ao desmatamento na região e diferentes Terra Indígenas, incluindo a Manoki, com 251 mil hectares, e a Ponte de Pedra, que protege o local do mito de origem de diversos povos do Cerrado mato-grossense. Ambientalistas apontam que a questão é especialmente delicada devido ao fato de o rio Sangue ser um dos principais formadores do Rio Juruena, afluente do Tapajós.
Primeiro ponto entre oito itens previstos na pauta de reunião ordinária realizada na quarta-feira, dia 19, o referendo sobre o projeto tomou 90% do tempo do encontro e foi marcado por questionamentos aos estudos apresentados pelo empreendedor. Erros técnicos diversos foram apontados por conselheiros, entre eles descuidos graves, como o fato de que todos os estudos de mastofauna, ictiofauna, herpetofauna e avifauna do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) terem sido feitos, em tempo recorde, por um único profissional sem especialização. Clique aqui para baixar documento PDF do Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), com um resumo das informações técnicas e conclusões geradas pela empresa Novo Norte Energia, contratada pelo empreendedor Global Energia Eletrica SA.
Entre as irregularidades apresentadas pela sociedade civil durante o encontro – todas ignoradas pela SEMA – está o fato de que trechos inteiros do EIA foram copiados de uma tese de doutorado facilmente encontrada na internet, sem sequer uma menção ao autor. Na reunião, uma representante do Ministério Público Estadual (MPE) leu ofício assinado por Luiz Alberto Esteves Scaloppe, procurador de Justiça do Mato Grosso, apontando que as pesquisas tiveram como base apenas uma ida a campo em junho para analisar o meio biótico durante a estação da seca e outra em outubro para as observações durante o período de chuvas.
O estudo foi concluído em novembro, antes mesmo do auge da época chuvosa, que se dá nos meses de dezembro, janeiro, fevereiro e março nesta região do Cerrado mato-grossense. O relatório ficou pronto em nove meses, tempo apertado para reunir bibliografia, realizar pesquisa de campo, estudar o ciclo hidrológico, entrevistar pessoas e sistematizar informações. Nas audiências públicas relacionadas a obra, ele foi apresentado como resultado do trabalho de um ano.
Além de criticar a pressa com que o levantamento foi feito, o MPE apresentou análise minuciosa demonstrando que o empreendedor baseou-se majoritariamente em dados secundários e cometeu erros primários quanto à metodologia de pesquisa e identificação de espécies, entre outras questões.
Somam-se às irregularidades na feitura do EIA, problemas relacionados às audiências públicas que antecederam o encontro. Parecer elaborado pela Ecotrópica, fundamentado na análise de cinco volumes de documentos da UHE Paiaguá cedidos pela SEMA, revelam que a população não participou devidamente do processo e que esclarecimentos básicos não foram disponibilizados. As atas, repletas de erros de português, revelam que questões levantadas não foram registradas, respondidas, ou foram respondidas de maneira incorreta. Quando perguntado se os peixes iam conseguir subir o rio para procriar, a ata das audiências aponta, por exemplo, que eles “se adaptarão à nova realidade, mais (sic) somente foi identificado 5 (cinco) espécies migratórias, e que o local onde está sendo construída a usina não afetará muito esta rota migratória”.
Além disso tudo, não constava no processo nenhum registro da presença da população nas audiências públicas. Nas atas, apenas SEMA, Consema e empreendedores assinam. Mas, durante a última reunião do Consema, após a leitura desse parecer, o representante da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Mato Grosso (FAMATO) sustentou em mãos uma lista de presença das audiências – documento que não havia sido incluído nos autos desde setembro de 2012, quando as audiências em Campo Novo do Parecis e Nova Maringá foram realizadas. A misteriosa lista de presença “apareceu” justamente durante a reunião do Consema que daria o referendo à licença e foi anexada ao processo um dia antes.
Povos Manoki e Paresi
A Fundação Nacional do Índio (FUNAI) solicitou à SEMA e ao empreendedor 15 dias antes das audiências públicas, a realização de Estudo de Componente Indígena (ECI) com consulta prévia às comunidades afetadas – ação que, pelos procedimentos internos da FUNAI, deve ser iniciada através de uma primeira comunicação do empreendedor com os indígenas. A FUNAI, recorrentemente criticada pelo Consema em reuniões ordinárias por supostamente não responder aos pedidos de manifestação encaminhados pelo setor de licenciamento da SEMA, deu sim orientações para a consulta aos povos Manoki e Paresi, potencialmente afetados se instalado o empreendimento.
O fato de a FUNAI ter solicitado estudo específico foi omitido pela SEMA e só revelado ao Consema devido ao pedido de vistas do licenciamento. A participação indígena foi tida como um problema para um licenciamento que poderia correr de modo célere. Mesmo de posse de comunicação por escrito e contato por telefone, o órgão licenciador do estado de Mato Grosso não tomou as providências necessárias para exigir do empreendedor o cumprimento do rito determinado pela FUNAI. Este, segundo o órgão indigenista federal, era requisito para a emissão do Termo de Referência para o Estudo de Componente Indígena (ECI) – diga-se, parte integrante do EIA, sem o qual o estudo não poderia ter sido considerado completo.
Apenas seis meses depois do ofício da FUNAI, a SEMA enviou uma comunicação formal ao empreendedor – que desde setembro de 2012 sabia, mas discordava da necessidade de ECI alegando que pelo fato de o empreendimento localizar-se a mais de 10 km da Terra Indígena Manoki (situa-se a 25km, segundo ele mesmo aferiu), não haverá qualquer impacto ao território indígena.
Nem a presença de diversos indígenas no plenário da OAB, em 19 de junho de 2013, onde foi realizada a última reunião do Consema, constrangeu os empreendedores, a SEMA ou os conselheiros que votaram pela liberação da licença da UHE Paiaguá. A existência dos indígenas foi ignorada no processo, assim como os impactos cumulativos e efeitos sinérgicos dos empreendimentos em operação e inventariados para a bacia do rio Juruena.
Representados pelo cacique geral do povo Manoki, Manoel Kanunxi, os índios disseram que não são “contra o progresso, mas desejam que os estudos para as usinas sejam feitos com qualidade, respeitando as instituições e as leis vigentes no país”. O cacique apontou impactos subestimados da usina hidrelétrica no rio Cravari, a PCH Bocaiuva, que está a 30 km da terra indígena e que reduziu drasticamente a vazão do rio e a presença de peixes. Ele defendeu que a SEMA deveria levar este tipo de relato em consideração das próximas vezes que licenciasse hidrelétricas na mesma bacia do rio Juruena.
Os conselheiros representantes de organizações ambientalistas, com exceção do Instituto Ação Verde [2], sustentaram que é impossível deliberar sobre uma usina como se ela fosse um empreendimento pontual e criticaram o Governo do Mato Grosso por licenciar cada uma das obras como se fossem entre si independentes em meio a outros 80 empreendimentos em operação ou inventariados pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) só para a bacia do rio Juruena. Sobre isso, o ISA fez uma analogia com as propagandas de novos empreendimentos imobiliários nas cidades, que são desenhados nos panfletos cercados de lindos jardins, como se não existissem outras intervenções urbanas no entorno.
Quem ainda acha que construir hidrelétricas deste jeito é a solução de geração de energia limpa precisa comparecer às reuniões do Consema de Mato Grosso.
*Este artigo foi originalmente publicado no site da Opan e no site da Repórter Brasil.
[1] Votaram a favor da licença: Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Mato Grosso (FAMATO), Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de Mato Grosso( CREA), Federação das Indústrias do Estado do Mato Grosso (FIEMT), Secretaria do Estado de Transporte e Pavimentação Urbana (SEPTU), Procuradoria Geral do Estado (PGE), Instituto Ação Verde, Associação Mato-grossense de Municípios (AMM), Federação do Comércio, Bens, Serviços e Turismo do Mato Grosso (Fecomércio) e Secretaria do Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso (SEMA). Votaram contra a liberação da licença prévia Instituto Socioambiental (ISA), Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), Ecotrópica, Instituto Centro de Vida (ICV), Comissão Pastoral da Terra (CPT), Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Estado de Mato Grosso (FETAGRI), Instituto Caracol, Instituto Floresta e Ministério Público Estadual (MPE). A votação terminou empatada e a SEMA decidiu o referendo se alinhando ao primeiro grupo.
[2] O Instituto Ação Verde é presidido pelo deputado estadual Carlos Avalone Junior (PSDB), que reconheceu em maio de 2013 no próprio Consema ser proprietário de cinco usinas hidrelétricas no rio Juruena. Ele sustentou na ocasião que este fato não configura qualquer problema ético com sua atuação no Consema, onde representa uma organização ambientalista da sociedade civil. De acordo com o site do Instituto Ação Verde na internet, a ONG foi criada para se contrapor ao posicionamento de “ONGs internacionais” e tem entre suas entidades formadoras as instituições: Federação das Indústrias no Estado de Mato Grosso (Fiemt), Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso (Famato), Associação de Produtores de Soja de Mato Grosso (Aprosoja), Associação de Criadores de Mato Grosso (Acrimat), Sindicato das Indústrias Sucroalcooleiras de Mato Grosso (Sindálcool), Centro das Indústrias Produtoras e Exportadoras de Madeira (Cipem), Sindicato da Construção, Geração, Transmissão e Distribuição de Energia Elétrica e Gás no Estado de Mato Grosso (Sincremat) e Associação Mato-grossense de Produtores de Algodão (Ampa).
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