Reportagens

Crimezinho ambiental

Usina de Campos Novos sacrifica araucárias, cobras e pássaros, repetindo em escala menor a devastação da vizinha Barra Grande. Adivinhe as empresas envolvidas.

Renan Antunes de Oliveira ·
25 de agosto de 2005 · 19 anos atrás

A paisagem é lunar na calha do Rio Canoas, onde está sendo erguida a usina de Campos Novos, na divisa entre Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Tudo o que se vê no canteiro de obras são enormes paredões de pedra por todos os lados.

A mata nativa de araucária das encostas foi quase toda derrubada em algum momento dos últimos 15 anos, na surdina. O Estudo de Impacto Ambiental diz que há uma espécie de cobra ameaçada de extinção, a Bothrops cotiara, “porque ela precisa de grandes extensões de mata preservada”. Já era. Também foram identificadas 178 espécies de aves na área, sendo “7% raras, 3% vulneráveis e 2% ameaçadas de extinção”. Nada foi feito para protegê-las.

O rapa na floresta e na bicharada foi dado enquanto os ambientalistas de plantão naqueles cafundós andavam mais preocupados com as usinas de Machadinho e Barra Grande. Quando eles se voltaram para Campos Novos, foi tarde demais – a obra está quase pronta.

“A gente não tinha sequer o estudo de impacto ambiental de Campos Novos para saber o que acontecia lá dentro”, lamenta o biólogo João de Deus Medeiros, diretor do departamento de botânica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “Acreditávamos que era uma área degradada, por ouvir dizer. Mas agora notamos que não era bem assim”.

É tarde. Até outubro, os últimos lotes de araucária, árvore da nobreza vegetal do Sul ameaçada de extinção, estão condenados à motosserra. Mais choradeira: “Não se sabe de autorização de corte, não se sabe como está sendo feita”, queixa-se Kátia Vasconcelos, da ong Amigos da Terra.

A espécie é protegida por lei, o que torna sua morte um crime ambiental – mas desta vez os protestos não são vigorosos porque é um lote dos pequenos. O estudo do impacto ambiental foi feito há 15 anos pela empresa Magna Engenharia, de Porto Alegre. Revelou a existência de apenas 162 km² de floresta ombrófila mista na vegetação original – dentro dela estão as araucárias.

O estudo foi mantido em relativo sigilo, enquanto muita coisa ia mudando na consciência ecológica nacional. De cinco anos para cá o consórcio Enercan começou a erguer a barragem – enquanto os ambientalistas ainda se preocupavam apenas com as irmãs maiores Machadinho e Barra Grande, com ênfase no verde, deixando a bicharada meio órfã.

Resultado: a Enercan avançou sem oposição e hoje seu canteiro de obras tem a tal paisagem lunar. Já ergueu a barragem e, mesmo sem licença de corte de vegetação, conseguiu fazer sumir quase toda floresta que estava em sua área de influência.

É verdade que o alagamento de Campos Novos, em calhas profundas do rio, não é um desastre ambiental das proporções do alagamento da barragem de Barra Grande, no rio Pelotas, onde 4 mil hectares da Mata Atlântica nativa estão sendo lentamente engolidos pelas águas – o lago estará cheio em outubro.

Ali, o consórcio Baesa enfrentou forte oposição de ambientalistas. Mas conseguiu avançar indenizando os atingidos, promovendo ações ambientais compensatórias, com o apoio do governo e enfrentando a Justiça. Tanto esforço valeu o afogamento consentido das araucárias e de tudo o que vive ao seu redor.

Os consórcios Baesa, de Barra Grande, e Enercan, de Campos Novos, têm quase a mesma composição acionária. No que importa, têm em comum as empresas Votorantim e Camargo Corrêa. Que também estão presentes em outra usina catarinense: Salto Pilão.

Mas Campos Novos está sendo levada com mais matreirice política. O grupo atraiu como parceira a estatal energética catarinense Celesc – e obteve a total boa vontade da Fatma, o órgão fiscalizador de meio ambiente do estado. Assim, este ano, justamente quando mais desmatou e mais vai desmatar, o consórcio Enercan conseguiu paradoxalmente ganhar o prêmio ambiental Fritz Muller, concedido pela tal Fatma.

Na etapa final do enchimento dos reservatórios, iniciada em janeiro, a Camargo Corrêa construiu portões e cercou com arame farpado todo acesso aos canteiros, bloqueando a ambientalistas todas as estradas que levam às áreas afetadas de Campos Novos e Barra Grande, vizinhas. 

Mesmo funcionários do Ministério de Minas e Energia são impedidos de entrar nas áreas e ver o que acontece – os do Ministério do Meio Ambiente já abandonaram a causa. Um cidadão comum que tente cruzar os portões é impedido por guardas armados. Eles mandam as pessoas sumirem dali.

O secretário de Desenvolvimento Regional de Santa Catarina, Justiniano Pedroso, natural da região, nunca ouviu falar em desmatamento – é como se vivesse em Marte. Já visitou a obra, mas apenas o escritório dos administradores. Não, ele nunca ouviu falar de problemas ambientais, ou de qualquer tipo. Acha que tudo vai bem lá dentro – opinião institucional, na linha Fatma.

Campos Novos vai engolir não apenas árvores e bichos. Estão ali alguns sítios arqueológicos importantes, com registros históricos da presença dos índios coroados, outrora donos do pedaço. As áreas dos acampamentos deles estão cercadas com uma fita amarela daquelas que a polícia usa nas cenas dos crimes – mas no dia em que a reportagem de O Eco passou por lá não havia ninguém trabalhando nelas.

A história conta que em 3 de abril de 1855 passou por ali o Cacique Doble, seguido por 30 índios botocudos quase mortos de fome. Um delegado de polícia apareceu para acusá-los de destruir roças. O homem anotou que o chefe Doble disse que não foram eles e que mendigou uma vaca para matar a fome da tribo.

O delegado não gostou da pedida. Mandou a turma sumir dali. Bem como faz o pessoal da Camargo Corrêa, 200 anos depois.

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Comentários 1

  1. Brasilia sd diz:

    Ninguém divulga isso. Afinal muitos já morreram defendendo esse interesse comum. Apenas o dinheiro (que em menos de 1 mês é transformado em lixo) importa.
    Eu fico vendo tantas empresas ganhando rios de dinheiro (que rapidamente desaparecem) em vender produtos tão desnecessários a pessoas que trocaram coisas tão importantes pelo desprazer de te-los por um dia apenas.