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Fogo sobre água

Camargo Corrêa se defende das denúncias de fraude em estudo ambiental para hidrelétrica no Paraná, mas só atiça a troca de acusações com a ong Liga Ambiental.

João Teixeira da Costa · Andreia Fanzeres ·
18 de novembro de 2005 · 18 anos atrás

Na edição passada, O Eco publicou reportagem sobre a hidrelétrica de Mauá, no rio Tibagi, Paraná. Pesquisadores que participaram do Estudo de Impacto Ambiental da obra acusam o grupo Camargo Corrêa de falsear as conclusões do documento, omitindo importantes alertas sobre os riscos ambientais envolvidos.

Agora a empreiteira vem a público recontar a história, com enredo completamente diferente. Segundo ela, quem incorreu em erros e omissões foram os pesquisadores. É o que afirma Kalil Farran, gerente de Estudos Ambientais da CNEC, empresa de engenharia da Camargo Corrêa responsável pelos estudos para implantação da usina.

Para fazer o levantamento da fauna e flora da região, Farran contratou a empresa de consultoria IGplan, que por sua vez escalou os especialistas Tom Grando, sua esposa Gislaine e Marcos Bornschein para o serviço. À medida que o cronograma avançava, no entanto, problemas começaram a surgir.

O gerente da CNEC diz que os estudos encomendados chegavam com atraso, e com uma série de impropriedades. Itens incompletos, falhas metodológicas, não-identificação das amostras usadas. Ele cita um exemplo de erro metodológico da IGplan: usar informações referentes ao baixo Tibagi, em vez de se restringir à área de influência direta da usina projetada, no médio Tibagi.

Em novembro de 2004, a CNEC enviou carta para a IGplan apontando todos os problemas do estudo. Em seguida, preocupados com o andamento do projeto, os diretores da CNEC resolveram colocar uma equipe para trabalhar com os técnicos contratados pela IGplan. Foi só a partir dali, segundo Farran, que a CNEC descobriu o que ele considera ser um grave conflito de interesses: os biólogos que trabalhavam para a IGplan também integravam uma ong chamada Liga Ambiental, que trabalha pela preservação da bacia do Tibagi.

Mas ainda não foi ali o rompimento total entre CNEC e IGplan. “Naquele momento nosso maior interesse era concluir os trabalhos com qualidade. A CNEC procurou inserir no Eia-Rima [Estudo e Relatório de Impacto Ambiental] todo o material aproveitável, e complementamos as informações com o trabalho da equipe própria”, explica. Para fortalecer o caráter científico da versão final do licenciamento, a empresa contratou mestres e doutores da USP. Foram eles que finalizaram o Eia, depois de uma visita de menos de uma semana ao trecho em que deve ser construída a usina. “Fiquei durante cinco dias lá. O prazo que me foi dado era muito exíguo. Acredito que cumpri meu trabalho, mas para que fosse realizado um diagnóstico suficiente, o acompanhamento deveria ter levado em conta a sazonalidade e as diferenças do local ao longo de um determinado período”, comenta o ictiólogo Alberto Akama, um dos contratados pela CNEC.

Kalil Farran diz respeitar o trabalho da Liga Ambiental. Mas não se conforma com o fato de ter de responder a colocações “sem consistência técnica e que nem sempre são verdadeiras”. O que existe de concreto, para ele, é que o Eia, em processo de avaliação, está circulando entre as partes interessadas. “Os questionamentos serão respondidos. Não existe atividade humana sem impacto ambiental, mas se as medidas mitigatórias e compensatórias incluídas no relatório forem cumpridas, esse impacto será minimizado”, defende.

“Atitude desesperada”

Os argumentos da Camargo Corrêa não fizeram os pesquisadores da Liga Ambiental pestanejarem. Tom Grando classificou de “mentirosas” as declarações de Kalil Farran. “Evidenciam uma atitude desesperada para evitar mais manchas no nome da empresa”, diz o ictiólogo. O que é inútil, pois, para ele, o estrago já foi feito.

Grando concorda com a Camargo Corrêa em pelo menos um ponto. Todo Estudo de Impacto Ambiental é sempre incompleto. “Estudos bem feitos demandam décadas, e ao término de todo trabalho sempre vai haver algo o que descobrir”. O que, para ele, não justifica a acusação da CNEC Engenharia, de que seu trabalho era inconsistente. “Se os estudos estivessem mesmo incompletos, não seria estranho que mais dados fossem adicionados. Mas o que eles fizeram foi subtrair informações”, afirma.

Segundo Grando, a parte sobre as aves da região recebeu tratamento ainda pior, fazendo com que o ornitólogo Marcos Bornschein sequer reconhecesse seu trabalho no estudo apresentado nas audiências públicas. Por causa da omissão desses dados, Grando elaborou um novo estudo comparativo sobre o que desapareceu no documento da CNEC Engenharia em relação ao trabalho dos pesquisadores. Pretende entregá-lo ao Ministério Público.

Também não ficou sem resposta a alegação de que os pesquisadores fizeram poucas análises na área do médio Tibagi, onde a usina deve ser construída. “Oferecemos a visão da bacia como um todo, como a lei manda. E existe um capítulo específico sobre a região que poderá ser inundada pelo empreendimento”, diz Grando, afirmando que a CNEC jogou fora todas as informações gerais, e usou só uma parte da avaliação sobre o médio Tibagi.

O apelo a cientistas da Universidade de São Paulo (USP) foi qualificado por Grando como “esperteza”. “Mandaram outra pessoa coletar em lugares diferentes e, obviamente, o resultado que ela obteve foi diferente do meu. Mesmo assim, as espécies que ele descobriu já estavam relacionadas na literatura científica sobre a região, citada no meu estudo, o que tem a mesma validade”.

Como numa brincadeira, a acusação de falta de licença ambiental para as coletas passa de um lado para o outro. “A empresa diz que o pesquisador da USP tinha uma licença de 2002, mas a pesquisa só aconteceu dois anos depois. Não é costume do Ibama dar esse documento com tanta antecedência”, insinua Grando. Kalil Farran não faz por menos: diz que a IGplan só obteve licença depois de coletar os bichos. “Eu não vou para campo sem autorização. Tenho a licença aqui comigo, com as datas certas, pouco anteriores ao período de coleta. Se ele desconhece essa licença, envio por fax para São Paulo agora mesmo”, responde o ictiólogo.

Limão e limonada

Grando lamenta as acusações de Farran, diz que até agora a questão envolvendo a hidrelétrica de Mauá não havia atingido o campo pessoal, mas engrossa as acusações: “Uma vez o Kalil ligou para minha casa para me fazer uma proposta. Ele disse: ‘Por que não fazemos do limão, uma limonada?’”. Em seguida, segundo Grando, ofereceu-lhe uma posição privilegiada para coordenar os programas ambientais no Tibagi depois da construção da usina, e pediu que ele não metesse o Ministério Público na história.

Quanto à relação entre IGplan e Liga Ambiental, o ictiólogo defende que ela nunca foi segredo para ninguém. “O proprietário da IGplan, Francisco Lange, é um dos sócios da Liga Ambiental. Isso foi apresentado à CNEC como um predicado. Poderia tornar o Eia crítico o suficiente para o conforto da empresa, que não teria motivos para sofrer tantos questionamentos”.

A briga em torno da usina de Mauá já extrapolou o ringue onde se enfrentam Liga Ambiental e Camargo Corrêa. Sobram reclamações também para o órgão ambiental paranaense. “Estamos indignados com o IAP”, queixa-se Sirlei Terezinha Dennemann, professora da Universidade Estadual de Londrina (UEL) que desde 1989 estuda a bacia do Tibagi. Segundo ela, muitas perguntas levantadas durante as audiências públicas ainda não foram esclarecidas. “Quando os representantes do IAP se encontram conosco, dizem estar do nosso lado e concordam que o Eia-Rima está incompleto. Mas, quando estão longe, não fazem nada. O órgão está coordenando o processo de forma confusa. Existe, realmente, uma questão política por trás disso tudo”.

Sirlei vê vários problemas no estudo defendido pela empreiteira. “Só foi feito, por exemplo, o levantamento dos afluentes da margem esquerda do rio, onde não existe mata nativa. Assim é fácil afirmar que os impactos serão menores”, reclama. Além disso, a professora acusa a empresa de não ter levantado a possibilidade de extinção de algumas espécies do local. “Eles omitem informações importantes, como a existência de mais de 60 tipos de peixes que podem desaparecer por causa da hidrelétrica. O cascudo é um exemplo de espécie que corre riscos, já que sobrevive apenas em rios com corredeiras e solos rochosos”.

* Colaborou para esta reportagem Aline Ribeiro.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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