“Tem a história da fazenda e a história dos legumes. Que história você quer que eu conte?”, perguntou Celina.
“As duas”, respondi.
Misture um pouco de política com família, terra molhada com dedicação, adicione ideologia e requinte, mexa tudo e ao final derrame amor e saúde. Essa é a receita de vida de Celina Vargas do Amaral Peixoto.
Neta de Getúlio Vargas (na foto, ao centro), filha de Amaral Peixoto (à direita) e ex-mulher de Moreira Franco, Celina herdou três sobrenomes que fizeram história na política brasileira. Mas escreveu sua própria história, também importante para o país. Formada em Sociologia, criou em 1973, plena ditadura, uma das principais instituições de estudo e preservação da memória nacional: o CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil), da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Nos anos 80, dirigiu o Arquivo Nacional, órgão então vinculado ao Ministério da Justiça (hoje, à Presidência da República). A década de 90 ela iniciou como diretora da FGV e terminou diretora do Sebrae. Mas foi nos últimos anos que sua vida mudou de rumo de vez. Celina resolveu dedicar-se integralmente à sua fazenda nos arredores de Petrópolis, estado do Rio.
Cafundó
A cerca de 130 km da capital, a Fazenda Cafundó, como o nome indica, fica em lugar isolado na direção da BR-040, caminho de Juiz de Fora. Comprada nos anos 40 por Ernâni Amaral Peixoto, pai de Celina, quando o acesso ainda era feito no lombo de burro, o lugar serviria de refúgio político para a família nas décadas seguintes.
“Nos anos 70, Juscelino Kubitschek esteve na Fazenda Cafundó em busca de conselhos de meu pai, que era presidente do Partido Social Democrático (PSD), que seria extinto pelos militares. Nessa mesma época, eu, minha prima Edith e nossos maridos procuramos um espaço seguro para ficar, enterrar documentos e guardar livros que eram procurados pela polícia política”, conta Celina.
Enquanto isso, a terra produzia hortaliças, alface, couve-flor, repolho, pimentão, tomate, entre outras coisas. Tradição agrícola que veio de seu bisavô, Manuel do Nascimento Vargas, pai de Getúlio, que foi tropeiro nos pampas do Rio Grande do Sul. A produção da Fazenda Cafundó era convencional, e a comercialização feita em grande escala para o mercado fluminense.
Com o tempo, o lucro diminuiu, o mercado se diversificou e surgiu em Celina o desejo de produzir uma linha mais natural. “Comecei plantando chás. Saía vendendo pelas lojas naturais do Rio. Mas como meu marido [Moreira Franco] era governador do Estado, isso não era uma coisa muito normal. Não deu certo, era ideológico demais e não sustentava a fazenda”, explica Celina.
Só em 1998, a agricultura orgânica assumiu o centro dos interesses profissionais de Celina. E, em se tratando dela, não poderiam ser orgânicos quaisquer. Decidiu investir em uma produção sofisticada, voltada para a alta gastronomia. Para orientá-la, contratou uma empresa de origem suíça especializada na área – a Agrosuisse. Foi também por essa época que conheceu Aly Ndiaye, um agrônomo senegalês especialista em orgânicos, com pós-graduação pela Embrapa.
Sementes escondidas
Aly começou a trabalhar no Brasil há dez anos com Paulo Aguinaga, da empresa Biohortas, hoje o maior produtor orgânico do estado. “Meu pai tinha uma fazenda no Senegal e sempre cuidei das terras, sempre gostei da roça. Vim para o Brasil porque queria fazer agronomia. Vou fazer agronomia na França? O único país que tem fatores climáticos idênticos ao Senegal é o Brasil, um país tropical e ao mesmo tempo um país de negão. Descobri o Brasil e me apaixonei”, conta Aly.
O sentimento não é mero detalhe. Deixando de lado aspectos técnicos, Aly faz questão de dizer que os principais elementos para trabalhar com orgânicos são amor e dedicação. “Eu não trabalho com a terra, aprendo com ela. A agricultura orgânica é uma arte, um trabalho de observação. Não é um pacote pronto”, explica. Celina considera seu encontro com Aly uma parceria perfeita. “Eu entendo de gastronomia e ele de terra”, resume Celina.
Para obter ingredientes da alta culinária, Celina precisava de sementes européias, como o persil, o radicchio, o basílico e o funcho, da família da erva doce. E como na época era difícil importar esses produtos, seus amigos a ajudavam trazendo as sementes em malas de viagem. “O engraçado é que eram cientistas sociais, economistas, acadêmicos, que nada entendiam do assunto. Mas me ajudaram, e muito, a superar esta barreira inicial”, recorda Celina.
Na lista de mais de 40 itens produzidos hoje pela Cafundó, há alface de folhas de carvalho vermelhas e verdes, lola rossa, brunia, chicória frisada, alface romana e uma linha de mini legumes: mini rabanete, mini cenoura, mini alho-poró. Entre os clientes, os melhores restaurantes da cidade (como Garcia & Rodrigues, Carême, Carlota, Roberta Sudbrack, Satyricon e Mirai) e grandes hotéis (como Copacabana Palace, Méridien, Sofitel e Sheraton), além das entregas em domicílio. Em breve, Celina planeja vender também em supermercados.
A colheita é feita três vezes por semana, atendendo a uma demanda pra lá de personalizada: os clientes ligam, fazem seus pedidos, os produtos são colhidos no dia e entregues no dia seguinte, bem cedo.
Sociologia orgânica
“Consegui qualificar meu produto. Entendi que não ia dar resultado continuar plantando alimentos em grande escala. Não acredito que essa seja a forma correta de comercializar. Hoje precisamos pensar mais na qualidade que na quantidade do produto”, diz Celina.
São dez funcionários envolvidos no semeio, plantio, colheita, venda e transporte dos produtos agrícolas distribuídos no mercado do Rio de Janeiro. Todos com carteira assinada, direito a moradia e cesta básica e com a obrigação de terem seus filhos registrados nas escolas publicas da região. “A relação com as pessoas é fundamental. A plantação orgânica é um modo de vida. O produto é apenas resultado de todo um trabalho. Eles precisam saber que fazem parte do processo, precisam ser valorizados”, salienta Celina.
Mudar a cultura dos trabalhadores não é fácil. A maioria não acredita que os produtos possam crescer sem a utilização de compostos químicos. Jorge Rodrigues de Melo é exemplo disso. Trabalha na fazenda há apenas um ano, mas sempre viveu na lavoura. Começou como agricultor convencional, plantando alface, maxixe, couve-flor e pimentão, e hoje é o produtor-chefe dos orgânicos da horta do Cafundó. “As condições de vida melhoraram, a gente trabalha menos e ganha mais dinheiro. Antes a gente trabalhava muito e não via o resultado. De vez em quando tiro uma alface e como na hora mesmo. Antes não comia de jeito nenhum”, comenta ele.
Eis o que fascina a Celina socióloga, na produção orgânica. A chance de vincular agricultura, meio ambiente, saúde, sabor e inclusão social. “Os orgânicos são um caminho para recuperar pessoas – sua honra e dignidade – dentro de um contexto social dilacerado”, explica. Descoberta que veio nos seus sete anos de experiência na direção do Sebrae, quando trabalhou com temas como o Desenvolvimento Local, o Microcrédito, o Turismo como Inclusão Social e a própria Agricultura Orgânica como opção de preservação ambiental e geração de emprego para o pequeno agricultor familiar.
“Poderíamos, também, falar no campo da ética. Se as pessoas que trabalham a terra se preocupam com os insumos que são colocados que afetam os produtos e, conseqüentemente, afetam a saúde das pessoas – estamos falando de um comportamento de preocupação com o outro. Com o consumidor e com a sociedade”, explica.
Consciência de quem sabe analisar o processo histórico de degradação ambiental sem melhoria social. “A realidade demonstra que, apesar de todo investimento que foi realizado no século XX, depois da Segunda Guerra a fome persiste. Houve um grande desenvolvimento tecnológico, como é o caso da soja, mas que tem conseqüências complicadas que repercutem a longo prazo no meio ambiente, nas florestas e na saúde. O Pantanal é um exemplo disso”, afirma Celina.
Ela conhece na prática as delicadas relações necessárias ao equilíbrio natural. “A natureza é muito frágil. Na fazenda temos cinco nascentes de água e mata atlântica em fase de recuperação margeando a horta. Em conseqüência, estamos aumentando nossa biodiversidade. Mas eu percebo que está havendo uma evaporação maior da água, acredito que seja por causa do aquecimento global. Na Região Serrana, as tempestades estão causando muitos problemas”, comenta.
Segundo Celina, os orgânicos em sua vida são a evolução de uma herança familiar. “Meu pai foi o primeiro político a falar contra o uso dos agrotóxicos no Senado. Ele sempre se preocupou com a terra, com as pessoas que trabalham a terra e as políticas sociais que poderiam ajudar às pessoas a melhorarem de vida. Faço parte desta história. Agora pratico a Sociologia em busca de uma prática política mais ética para a Fazenda do Cafundó”. No que vem se saindo muito bem.
* Cynthia Howlett é jornalista e advogada ambiental, e integra o conselho consultivo da WWF-Brasil.
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