Em alguns meses, Santa Catarina deve ganhar mais uma unidade de conservação de proteção integral, em seu Planalto Serrano. A previsão do Ministério do Meio Ambiente para o nascimento do Parque Nacional do Campo dos Padres, no entanto, pode ser apenas uma suposição. Após um conturbado processo de apresentação à comunidade, a proposta de criação da UC ainda corre o risco de voltar para a gaveta. Isso porque, segundo locais, “a população tem verdadeiro horror a unidades de conservação”.
O desprezo pelas áreas protegidas não é, necessariamente, sinônimo de aversão à natureza. O motivo que levou setores da sociedade catarinense a buscarem a Justiça contra a criação do parque nacional está no passado. Criado na década de 60, o Parque Nacional de São Joaquim, que abarca terras principalmente de Urubici e Bom Jardim, privou as famílias que ali moravam do uso da terra, e até hoje, a maioria ainda não foi indenizada. O temor é que a história se repita.
“Já se passaram mais de 40 anos desde que o São Joaquim foi criado e apenas nove proprietários foram indenizados. Como vão querer criar outro parque sem terminar o que ainda precisa ser feito?”, questiona Salete Delfina, presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Urubici, um dos autores da ação civil pública para tentar anular a proposta do MMA.
No último dia 24, o juiz Julio Schattschneider deu a sentença favorável ao governo federal. Mas a confusão em torno do projeto que pretende abranger 56 mil hectares em campos de altitude prossegue. Os argumentos são sempre olhando para trás. “Os proprietários (do São Joaquim) ficaram proibidos de mexer na terra e ao longo dessas décadas isso só gerou devastação. O que era para ser preservado foi destruído. Os órgãos ambientais não têm bom senso. Geram raiva, não negociação”, critica o biólogo conservacionista Jorge Albuquerque, que preside a ONG catarinense Montanha Viva.
Albuquerque esteve por quatro anos na região do Campo dos Padres, participando de um projeto de estudo da fauna local, e não tem dúvidas de sua importância ecológica. Além de abrigar nascentes de diversos rios, é ali o ponto de maior endemismo da flora catarinense. Em suas andanças, o biólogo conta que foram registradas cerca de 30 espécies de aves de rapina. “É uma área que merece toda a atenção. Tem enorme relevância na conservação das aves de rapina de grande porte, como os gaviões-pega-macaco, gaviões-de-penacho e a águia cinzenta”, enumera.
O problema, diz o especialista, está na forma como os parques têm sido geridos e gerenciados. “Não adianta dizer que é unidade de conservação, virar as costas e ir embora. A população fica solta lá. Sou contra ‘parques de papel’”, ironiza, apontando incoerências na política ambiental do governo: “Enquanto de um lado eles autorizam o funcionamento de hidrelétricas em rios como o Pelotas, produzindo imensos lagos que afogaram as poucas áreas com araucárias milenares, por outro lado se esforçam na criação de unidades de conservação para a espécie”.
Desconfiança
O Ministério do Meio Ambiente não acredita que a mobilização de moradores de Urubici e Bom Jardim – principais municípios que o novo parque vai abranger – tenha sido espontânea. Para Emerson de Oliveira, do Departamento de Áreas Protegidas do ministério, houve influência de poderosos. “A ação civil pública foi encabeçada por alguns grandes proprietários da região que manipulam de uma forma geral. Sabe como funciona cidade do interior. Tem jogo de terrorismo”, especula.
Quanto à questão fundiária mal resolvida no passado, o MMA garante que os tempos mudaram. Segundo Oliveira, ninguém precisa se preocupar com a eficácia na gestão do novo parque. “Antigamente se criava UC por se achar bonito ou por mera conveniência. Não se previa recursos para fazer preservação. Agora, com a lei do SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação), podemos criar novas unidades dizendo de onde virão os recursos”, afirma, fazendo referência à verba que grandes empreendimentos têm que separar para compensar os estragos ambientais que causam.
“Com essa questão da compensação, estamos conseguindo corrigir passivos de UCs criadas lá atrás, como nesse caso do São Joaquim, que é uma vergonha”, admite. No entanto, ele confessa que as indenizações não serão solucionadas num passe de mágica. “Não vamos ter como resolver toda a questão fundiária de imediato, até porque tem que se fazer um estudo detalhado”, diz, prometendo que este ano mais algumas famílias de São Joaquim finalmente verão a cor do dinheiro.
Na encruzilhada de acusações, também sobra munição contra o governo estadual. Além de endossar a hipótese de manipulação levantada por Oliveira, o biólogo João de Deus Medeiros, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), acredita que os grupos contrários às UCs encontram respaldo garantido no governo do estado. “A política do atual governador Luiz Henrique (da Silveira) é claramente contrária não só às UCs, mas a políticas ambientais mais fortes. Tanto é que o governo do estado ainda hoje promove ação pedindo inconstitucionalidade da lei do SNUC”.
Medeiros, que colaborou na formulação da proposta do Campo dos Padres, diz que os estudos iniciais tiveram a participação de diferentes setores. “Quando começaram os estudos, o MMA e o Ibama tentaram fazê-los da forma mais participativa possível, envolvendo entidades ambientalistas, prefeituras e governo do estado. No próprio trabalho de campo teve vários representantes desses setores trabalhando diretamente”, afirma. Segundo o professor, durante este processo não houve críticas. Elas começaram a aparecer só mais tarde, quando, em sua opinião, os poderosos já haviam matutado uma ofensiva em conjunto.
A Fundação de Meio Ambiente (Fatma), que representa o governo estadual diz que não foi bem assim. Em nota, sua assessoria afirma que “não participou oficialmente da discussão da implantação do Parque Campos dos Padres, por isso não tem uma posição favorável ou contrária sobre o assunto”. Acusada por Medeiros de ter fomentado as críticas entre os moradores, a Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri) também esquivou-se. Coordenador de um dos departamentos do Epagri, Hugo Braga afirma que a participação de seus técnicos se resumiu a “abrir porteiras” na região. Braga, porém, não pensou duas vezes em criticar a proposta: “Estão criando uma série de parques sem discussão mais profunda com a comunidade”.
O tempo passa
Caso não haja mais empecilhos pela frente, Emerson de Oliveira prevê que o decreto do novo parque seja assinado em alguns meses. Na proposta inicial, a unidade abrangeria 62 mil hectares de terra. Mas com as discussões, esse número foi reduzido para 56 mil, na tentativa de amenizar os conflitos. “Diminuimos a área justamente porque nas consultas públicas muitos se disseram prejudicados”.
Segundo ele, o MMA aceitou a proposta de tirar sete propriedades dos limites pré-determinados e transformá-las em Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN). “Do ponto de vista técnico, o parque está pronto para a criação. O que pode atrasar agora é a questão política. Não duvido que o governador entre no circuito defendendo um ou outro proprietário. Tem gente com mais de cinco mil hectares dentro da área”, afirma.
Enquanto os desentendimentos sobre o parque ecoam pelas ruas de Urubici e Bom Jardim, o Campo dos Padres recebe gradualmente novos visitantes. De um lado, a pecuária extensiva sobe o morro sem impedimentos, não raro degradando importantes nascentes com seu pisoteio. De outro, espécies florestais exóticas, como o pinus, ganham com velocidade os campos que um dia foram de araucárias. E para completar a celeuma no Planalto Serrano catarinense, o fogo não deixa de marcar ponto e lamber o que ainda insiste em ficar de pé.
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