Reportagens

O aterro da discórdia

Há cinco anos enfrentando ações judiciais, o aterro de Paciência, no Rio, está prestes a receber Licença de Instalação. Prefeitura não cogita qualquer outra saída para o lixo.

Bernardo Camara ·
15 de julho de 2008 · 16 anos atrás

A história começou em 2003, quando o abarrotado Aterro Metropolitano de Gramacho, na Baixada Fluminense, já chegava ao seu limite. Para resolver o problema, a prefeitura iniciou um processo de licitação do novo Centro de Tratamento de Resíduos que substituiria o antigo depósito. Venceu a transportadora paulista Júlio Simões, com a proposta de um aterro em Paciência, na zona oeste. Foi a empresa assinar o contrato e a confusão começou. Choveram ações judiciais questionando o projeto. E o processo de licenciamento, que em condições normais duraria pouco mais de dois anos, continua até hoje. O empreendimento só foi receber a Licença Prévia no último mês de junho, e mesmo sabendo que ainda há chances de a Justiça vetar de vez o aterro, a Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb) não cogita qualquer outra solução: “Bota a mão na cabeça que vai chover lixo. Não temos plano B”.

Assessor da Diretoria Técnica e Industrial da Comlurb, José Henrique Penido afirma que não existe melhor alternativa a Paciência: “Aquela área é totalmente degradada. Não tem localização melhor no Rio”. No entanto, desde que saiu o resultado da licitação, foram cerca de 50 ações movidas por ONGs e associação de moradores, além de questionamentos levantados por órgãos como Ministério Público e Tribunal de Contas do Município.

A empresa dona do empreendimento rebateu uma por uma, e através de recursos judiciais, conseguiu não só que o licenciamento prosseguisse, como obteve de um juiz a determinação de que os órgãos ambientais concedessem a LP. “Não existe motivo para que se mova ação. Nenhum projeto tem a transparência que o CTR tem”, argumenta o gerente de operações da Júlio Simões, Roberto Lemos. “Tudo o que nos foi pedido foi feito. Em tempo hábil, toda a documentação foi entregue”.

Toque de caixa

Desde o início, a expectativa era que o CTR saísse do forno rapidamente. Apenas 15 dias após assinar o contrato com a prefeitura, a transportadora paulista já batia na porta da Feema com as duas mil e quinhentas páginas do Estudo de Impacto Ambiental nas mãos. Para justificar o tempo recorde na preparação do complexo documento, Lemos explica que o escritório que o produziu – o mesmo a projetar o aterro – aproveitou a “riqueza de detalhes” levantadas enquanto o centro de tratamento era rascunhado.

“Para entrar numa licitação dessa envergadura você precisa fazer um estudo aprofundado para lançar a proposta. Então, quando entramos no processo licitatório, o Eia-Rima já estava sendo feito. O estudo é muito completo e aprofundado”, garante. Prova disso, diz ele, é que a Feema não exigiu qualquer revisão no relatório, aceitando tudo em primeira mão. Por meio de sua assessoria, o órgão contradiz a empresa e, em nota, afirma que solicitou “alguns documentos” para complementação, como o Estudo de Impacto Viário. Apesar disso, ressalta que o projeto tinha “nível de detalhamento satisfatório” para continuar sendo tocado.

Ao botar o edital na rua, o executivo municipal requisitava a divisão do CTR em dois lotes, para que as nove mil toneladas diárias de resíduos não ficassem concentradas num só ponto. A empresa vencedora, porém, conquistou a comissão de licitação com os 3,6 milhões de metros quadrados que dispunha na Fazenda Santa Rosa, na Estrada do Furado, Paciência. O espaço daria conta de todo o lixo de uma só vez. Mas não demorou para que as intenções tropeçassem no Plano Diretor do município, que proíbe atividades industriais na região, por se tratar de bairro residencial.

Enquanto a Júlio Simões corria para entregar os documentos e entrar com o pedido da Licença Prévia, a prefeitura ingressou na maratona para resolver o empecilho. Sem pestanejar, o prefeito Cesar Maia soltou um decreto que transformava a fazenda em Área de Especial Interesse Funcional, dando sinal verde à instalação do aterro. Por unanimidade, no entanto, o Tribunal de Contas do Município entendeu que a medida “havia extravasado os limites do poder regulamentar”, e a Câmara Municipal acabou sustando o decreto do prefeito, em maio de 2007.

Sem ter para onde correr, a prefeitura resolveu anular definitivamente a licitação e começar tudo do zero. Baixou novo decreto com a decisão e criou um Grupo de Trabalho para resolver o que seria feito dali em diante. Entretanto, não foi preciso pensar muito. A Júlio Simões logo conseguiu que a Justiça jogasse para o alto os decretos da Câmara e da prefeitura. “Dentre as alternativas analisadas, o GT recomendou pela manutenção do contrato firmado entre a Comlurb e a Júlio Simões como alternativa mais rápida e segura para solucionar o problema da disposição final dos resíduos urbanos gerados no Rio e garantir a saúde da população e do meio ambiente”, justifica Penido.

Polêmicas

O fato de o Ministério Público ter entrado em campo contra o empreendimento botou mais lenha na fogueira, já acesa por cinco anos. Num parecer, o MP apontou o dedo para o fato de o CTR estar projetado num terreno próximo ao aeroporto de Jacarepaguá e a menos de dez quilômetros da Base Aérea de Santa Cruz, o que seria perigoso pelo potencial de atração de aves, como urubus. Mas os advogados da companhia já convenceram a Justiça de que não haveria problemas desse tipo.

Para o biólogo e consultor ambiental da Recicloteca (Centro de Informações sobre Reciclagem e Meio Ambiente), Eduardo Bernhardt, essa questão nem é das mais problemáticas. Segundo ele, um dos grandes erros vem do início: a não inclusão do passivo ambiental de Gramacho na licitação. “Seria importante não começar novo capítulo sem ter terminado o anterior. Se você dissocia o encerramento de Gramacho da construção do Aterro de Paciência, não há garantia alguma de que a prefeitura não vá abandonar aquilo”, diz, sugerindo que o edital licitatório obrigasse a empresa ganhadora a fazer a limpa no antigo terreno.

Bernhardt também questiona o fato de as estações de transferência – pontos onde o lixo coletado é concentrado antes de ser levado para o aterro – não terem entrado no processo de licenciamento desde o início. Espalhadas pelas zonas norte e oeste da cidade – nenhuma na zona sul –, e com estimativa de receberem de 700 a três mil toneladas, as estações só vão precisar das últimas licenças: as de instalação e de operação. “Elas não foram incluídas no processo. Isso deveria correr em paralelo. É como se licenciassem o último vagão sem a locomotiva”, diz.

Para o técnico da Comlurb, as preocupações de Bernhardt são demasiadas. No que se refere às estações de transferência, ele explica que as regras são diferentes pois as pressões sobre o ambiente são menores. Quanto às heranças de Gramacho, Penido diz ser “um problema da Comlurb”, e que não há motivos para dor de cabeça: “O passivo ambiental de Gramacho hoje é zero, está resolvido”.

Segundo ele, a empresa que ganhou a licitação para explorar o gás gerado pelo lixo do local vai fazer o encerramento do terreno. E do lado de fora, informa, a Comlurb está fazendo perfurações no solo para saber se o chorume chegou onde não deveria. “Mas o mais provável é que a contaminação esteja sendo provocada pelos lixões que foram sendo criados na periferia. Vamos ver de onde veio a contaminação, pois Gramacho tem barreira para segurar o chorume”, avisou.

Concorrência pelo custo

No último ano, enquanto as discussões em torno do projeto prosseguiam, a Júlio Simões foi alvo de novas polêmicas. Ao longo de seis meses, a Câmara Municipal investigou a concentração de aproximadamente 80% dos contratos da Comlurb nas mãos da transportadora. A partir de inspeções, o Tribunal de Contas do Município apontou irregularidades que estariam favorecendo os lucros da empresa. José Henrique Penido, porém, rebate as acusações do monopólio. “Se a Júlio Simões ganha as licitações é porque tem preço. Desse monopólio eu gosto”, diz.

Para ele, a melhor coisa que a Comlurb fez nos últimos anos foi autorizar que empresas sem experiência no tratamento de resíduos concorressem nas licitações de aterros. Dessa forma, afirma, o cartel no setor é quebrado e os custos oferecidos pelos novatos são bem mais realistas. É o caso da Júlio Simões, que pela primeira vez ensaia a gestão de um centro de tratamento.

Mas Bernhardt, da Recicloteca, considera o argumento leviano. “Quem opera aterro sabe que é impossível tratar a quantidade de lixo pretendida pelo baixo valor que eles ofereceram durante a licitação”.

Como fato consumado

Apesar de uma penca de ações judiciais ainda não terem o mérito julgado, a Júlio Simões está confiante nas liminares que a favorecem, e vai adiantando seu lado. Há dois anos, quando a Licença Prévia ainda nem pensava em sair, a empresa já fincava mudas no local onde está prevista a construção do aterro. “Nenhum aterro tem cinturão verde com largura mínima de 100 metros. Já fizemos o plantio e hoje fazemos a manutenção”, diz o gerente Roberto Lemos.

A empresa também tem investido pesado para convencer a população de Paciência – que andava cabreira – de que um depósito de resíduos cravado em meio populoso não faz mal a ninguém. “Pagamos cinco viagens para que as pessoas da comunidade fossem conhecer um aterro sanitário em São Paulo. Hoje não existe nenhum tipo de reação contrária. Não vou dizer 100%, mas o grau de aceitação na comunidade do entorno é muito grande”, assegura, sem esquecer de frisar: “O que fizemos ao longo dos anos foi levar informação. Não fomos convencer ninguém se é bom ou ruim”.

Fundador do Fórum de Meio Ambiente da Baía de Sepetiba, que atua junto a moradores da zona oeste, o ambientalista Sérgio Ricardo não acredita em uma palavra de Lemos. “Em volta do aterro moram 80 mil pessoas. Atravessou a rua, tem comunidade com milhares de famílias. Vão transformar a região em zona de doença e poluição”, critica. “E como é que a Feema pode dar licença para um empreendimento que foi anulado pelo próprio Cesar Maia?”.

Sobre isso, o órgão argumenta que as discussões da época giravam em torno do processo licitatório, e não do projeto em si. “Desta forma, tal fato (a anulação da licitação) não se tornaria impeditivo para a continuidade da análise ambiental do empreendimento”, diz a nota, ainda que em caso de suspensão do processo de concorrência, o CTR de Paciência estaria consequentemente anulado.

O biólogo da Recicloteca se diz decepcionado com a concessão da Licença Prévia: “A Feema, não sei porque, resolveu ignorar todos os indicativos econômicos, ambientais e sociais que estavam sendo desrespeitadas e tocar o processo de licenciamento. É uma pena, porque ela tem uma história maravilhosa de fiscalização, legislação, trabalho sério pela preservação. Agora, deu descarga em tudo o que as pessoas mais antigas construíram”.

Críticas à parte, o processo de licenciamento prossegue. De acordo com a Comlurb, a companhia paulista já entregou todos os documentos necessários para o pedido da Licença de Instalação. E apesar de o órgão estadual dizer que não há prazos definidos, a expectativa é que ela saia o quanto antes. “A LI é quase certa. A Feema deu indicação de que, se estiver tudo ok, entre 45 e 60 dias está emitida essa licença”, antecipa José Henrique Penido.

  • Bernardo Camara

    Bernardo Camara é jornalista formado pela PUC-Rio. Desde 2007 dedica-se a temas ambientais e de direitos humanos. Viveu por 4...

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