Chegamos a Jacareacanga após quase 8 horas de viagem através da BR-230, a Transamazônica. Os dois objetivos principais dessa perna eram falar com os vereadores e lideranças mundurukus e visitar uma de suas aldeias. Ouvimos informações desencontradas sobre a situação na cidade. Houve quem nos dissesse que o clima estava tenso por conta da detenção pelos mundurukus de 3 biólogos que trabalhavam para a Eletrobrás fazendo pesquisas na região. Ainda no ônibus, uma moça com uma criança ainda de peito nos conta que havia se mudado para Jacareacanga há 4 anos e que gostava da tranquilidade de lá.
O município de Jacareacanga tem 14,1 mil habitantes (Censo do IBGE de 2010), boa parte indígena. A cidade é composta de meia dúzia de ruas de terra largas. Saímos do micro-ônibus que nos trouxe e não chegamos a andar um quarteirão para encontrar o hotel São Cristovão, comandado pela simpática, mas durona, Dona Dé. Famintos, seguimos até a praça da cidade. Era um domingo à noite e a praça estava cheia. Sentamos no “Pizzaria e Lanchonete São Benedito”, um lugar espaçoso com piso de cimento, teto de zinco e sem paredes. Ao lado do balcão de serviço, duas TVs grandes de LCD. Uma passava o jogo do Flamengo x Vasco, a outra o programa do Faustão. Quando acabou o jogo, o local se esvaziou. A pizza de palmito era boa.
Na manhã seguinte, fomos até a Câmara Municipal de Jacareacanga, onde primeiro encontramos o vereador Raimundo Santiago, 49, mais conhecido como Raimundinho do PT, eleito com 262 votos (4,55% do total). Após dois dedos de conversa, ele chama e nos apresenta a Elinaldo Crixi Munduruku, 43, um dos três vereadores indígenas do município, eleito pela primeira vez (na segunda tentativa) pelo PMDB, com 291 votos. Simpático, ele nos concede uma entrevista em vídeo no seu gabinete, uma pequena sala onde fica sua mesa e computador. Elinaldo é católico, casado e tem 4 filhos. Não esconde o orgulho ao contar que a filha mais velha estuda direito em Santarém. Ele é esquivo ao falar da sua posição com relação as hidroelétricas do Tapajós, mas parece apoiá-las. Diz que os mundurukus costumavam viver no campo, mais afastados do rio e que foram as missões que mudaram o hábito e trouxeram as aldeias para a beira do Tapajós e afluentes. Uma das principais missões locais é a Cururu, criada em 1912 por padres católicos alemães no rio que leva o mesmo nome. Elinaldo conta que, na a maior parte, as aldeias são ermas e carentes, que ele gasta fortunas em óleo combustível para visitar a sua própria aldeia. Conta a história de “uma parente” (palavra que, aprendemos, pode significar alguém próximo ou qualquer munduruku) que faleceu por demora no atendimento. A moça estava grávida e teve complicações. Sua aldeia ficava a 24 horas a pé do primeiro campo de pouso. Ela percorreu esse caminho e voou para Jacareacanga. Ao ser atendida, não resistiu.
Saímos da Câmara e fomos a Funai, cuja permissão era necessária para visitar a aldeia Sai Cinza, que fica a 40 minutos “de motor” (maneira de se referir ao tempo de navegação por rio) de Jacareacanga. A um quarteirão de distância encontramos a sede local da Funai, uma construção térrea depauperada, que parecia vazia. Fomos entrando e, finalmente, no fundo de um corredor, surgiu um rapaz. Contamos nossas intenções e ele nos diz que estava no local Maria Leusa, vice-coordenadora da Associação Pusuru, principal representação dos mundurukus. Entramos em uma sala onde ela trabalhava em um PC, acompanhada de duas crianças, seus filhos, e Gersinho, outro vereador munduruku, eleito pelo PT (346 votos). Novamente, expomos nosso desejo de visitar a Sai Cinza. Ela nos olha longamente, muito séria, e bate o martelo. Devemos ir às 16h à sede da Associação Pusuru, onde as lideranças que estiverem presentes deliberarão sobre permitir ou não a nossa visita.
Elinaldo havia nos dito que o cacique-geral das tribos mundurukus do Alto Tapajós estava na cidade, acompanhando o filho ao médico. Tínhamos pelo menos 4 horas até a reunião na Pusuru. Almoçamos um ótimo tambaqui grelhado (churrasco por aqui é de peixe ou de carne) e fomos procurar Arnaldo Caetano Kabá, o cacique-geral. A primeira parada foi na Casai (Casa de Saúde Indígena). Lá, nos disseram que Arnaldo estava no hospital municipal, logo ao lado. Foi chocante ver a diferença das instalações do hospital e da Casai. O primeiro é modesto, mas bem instalado. Já a Casai é uma casa em mau estado. Do lado de fora, estão mulheres mundurukus sentadas no chão sujo com bebês e crianças pequenas. Na recepção do hospital, há uma sala com cadeiras de espera e uma televisão de LCD, e a recepcionista trabalha em uma sala refrigerada. Na Casai, o que existe é uma sala pequena, escura, com avisos repetidos em português e munduruku nas paredes. Tem uma pequena recepção onde fica um rádio de comunicação. Em nenhum dos dois lugares encontramos o cacique-geral.
O calor é escaldante. Em frente a Casai, do outro lado da rua, há um pequeno comércio com placa de Xerox. Vou lá e descubro que eles têm um computador ligado a internet, algo que ainda não havíamos achado na cidade. Na pequena loja, o ar-condicionado está a toda. No ambiente geladinho, refugiam-se do calor umas 6 pessoas que não parecem clientes.
Deliberação Munduruku
Chegamos 10 minutos adiantados à Associação Pusuru. O terreno tem duas construções: uma casa menor na frente e outra maior na parte dos fundos, onde uma ala cheia de redes penduradas serve de dormitório para indígenas que vão a cidade resolver algum problema pessoal. Um grupo de 10 ou 15 homens está na parte da frente. Eles nos recebem amigavelmente, continuam conversando entre eles e não se incomodam com nossas câmeras. Em seguida, chega Maria Leusa, a vice-coordenadora da Associação. Ela nos conduz para um pequeno quarto na construção dos fundos e abre as conversas. Nesse momento, nós dois sentamos em um banco, enquanto do outro lado do cômodo de 2×3 metros está Maria Leusa e Jairo, assessor do cacique-geral. Outras 5 pessoas estão de pé encostadas pelas paredes do quarto. Na janela, mais 4 ou 5 rostos curiosos nos olham. Da porta do quarto, mais gente querendo assistir. Em nenhum momento nos sentimos ameaçados, mas estávamos literalmente cercados de mundurukus. Entretanto, o momento era intenso, severo e o quarto estava um forno.
Eles nos perguntam diversas vezes quem somos, quais as nossas intenções, se estamos do lado da causa deles (contras as hidrelétricas) ou não. Explicamos que não temos lado, somos jornalistas, contadores de histórias. Jairo, assessor do cacique-geral, diz que isso é importante, que eles têm muitas histórias para contar, que o mundo precisa saber que eles existem e o que estão passando. Enquanto conversamos cai uma pancada de chuva. Quando ela termina, Maria Leusa sugere que continuemos a conversa ao ar livre.
Nesse momento, chegam Arnaldo Caetano Kaba, o cacique-geral, e Vicente Saw, cacique da aldeia Sai Cinza. Elas nos pedem explicações e novamente perguntam que bem nossa reportagem lhes trará. Repetimos nossa resposta. Os mundurukus deliberam entre si na sua própria língua. Ela é incompreensível para nós, exceto por palavras em português que surgem esporádicas. Na conversa entre eles, distinguimos “jornalista”, “entrevista”, “dinheiro”, “agosto”.
Jairo nos diz que os mundurukus não querem as hidrelétricas, que sua sociedade é igualitária e não precisa de dinheiro, apenas dos recursos da floresta e do rio, que as hidrelétricas serão a porta de entrada para novos projetos de mineração e para os “sojeiros” (gíria da região para produtores de soja), que eles estarão condenados se elas forem construídas. Ele repete que nosso trabalho é importante para que as pessoas dos grandes centros saibam o que ocorre ali. Isso nos anima a pensar que conseguiremos a permissão para visitar a Saí Cinza.
Mais deliberações em munduruku e quando imaginamos que a permissão será concedida, recebemos um belo não. No dia 3 de agosto, haverá uma reunião do cacique-geral, dos caciques de grandes aldeias e dos capitães (equivalente a cacique). Juntos, serão 118 lideranças reunidas para mais um ato contra as hidrelétricas. Eles nos dizem que seremos bem-vindos nessa reunião, mas antes não. Temem também conceder a permissão para a nossa visita e que isso seja recebido como uma ofensa pelos índios da aldeia Sai Cinza. É estranho, pois o próprio cacique da Sai Cinza está a nossa frente e ele não parece ter poder para tomar sozinho a decisão de conceder a visita. Eles dizem temer pela nossa segurança, o que, do nosso lado, soa como um sólido argumento. Estamos frustrados, mas desistimos.
Os mundurukus são fortes, compactos, mas tem pouca altura. Os homens devem ter em média 1,60 metro. Eles são sociáveis, amistosos, não parecem interessados em violência. Mas se dizem em guerra em defesa da própria terra. No fim das contas, talvez tenha sido mais impactante encontrá-los na cidade, com roupas “de branco”, mas deixando transparecer o quanto são índios, e o quanto isso os torna frágeis em relação às instituições e recursos que se movem para construir as usinas hidrelétricas do Complexo do Tapajós. Poucos falam português e aqueles que o fazem dominam a língua como um estrangeiro.
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