Reportagens

Amazônia radical

Corrida de aventura no Pará reúne os melhores atletas do Brasil em área protegida com cachoeiras, grutas e florestas. E revela um esporte que cresce a cada ano no país.

Andreia Fanzeres ·
21 de setembro de 2006 · 18 anos atrás

Uma ilha de floresta preservada no leste do Pará convida visitantes para o desfrute de belas cachoeiras, água cristalina, mata fechada e uma incomum paisagem de serra em plena Amazônia. Mas o ingresso nesse paraíso não é para um simples passeio. Entre os dias 22 e 24 de setembro, os privilegiados são atletas de alto nível, ávidos por uma boa pontuação em uma das maiores corridas de aventura já realizadas no Norte do país, a Try On Kaluanã Amazônia Extrema.

São pouco mais de 200 quilômetros de competição dentro do Parque Estadual da Serra dos Martírios (ou Serra das Andorinhas, como também é conhecido), no município de São Geraldo do Araguaia (PA). A unidade de conservação de 24,8 mil hectares fica às margens do rio que deu nome à cidade, com águas cristalinas por onde os competidores terão que remar por aproximadamente 60 quilômetros. Só que depois da canoagem nada de banho de rio ou descanso porque mais 80 quilômetros de trekking (caminhada por trilhas) aguardam as 15 equipes competidoras. Já se cansou? Pois ainda estão previstos outros 60 quilômetros de bicicleta, além de obstáculos pelo caminho superados com o uso de técnicas verticais, como rapel, tirolesa e canioning (descida de cachoeiras com corda).

Essas modalidades esportivas dentro de uma corrida de aventura já são esperadas pelos competidores, mas eles só são informados sobre o percurso horas antes de tudo começar, o que aumenta a adrenalina. Assim que são informados, de véspera, num momento conhecido como briefing, eles começam a traçar estratégias de navegação. Sim, não basta ter um excelente preparo físico para encarar um desafio desses. É preciso saber se orientar com mapas e bússolas – isso sem falar na complexidade de lidar com as dificuldades dos integrantes da própria equipe, como exaustão, frio, bolhas nos pés e outros incidentes comuns a quem se expõe a corridas assim.

Todo cuidado é pouco

Por isso, nos 13 Postos de Controle (PCs) por onde os atletas são obrigados a passar, registrando o horário e conclusão daquele pedaço do percurso, há um “primeiro socorrista” e estrutura para emergências médicas. Se algum incidente acontecer entre um PC e outro as equipes têm como chamar ajuda. Ana Paula Brasil, jornalista que corre e cobre a maioria das corridas de aventura, explica que normalmente os atletas carregam um sinalizador e uma maletinha de primeiros socorros, além de um rádio e celular lacrados. “Se ele pedir socorro está desclassificado. Ele será resgatado e a equipe pode até continuar, mas não pontua”, explica.

Segundo Murilo Bellesi, organizador da Kaluanã, 55 pessoas estão envolvidas para dar apoio e segurança à prova, entre bombeiros, socorristas e pessoas da comunidade local que conhecem muito bem a área. “Esta é a 17ª prova da Kaluanã que organizamos no Pará e temos os menores índices de acidentes”, informa. Bellesi diz que foram traçadas rotas de escape para emergência dentro da zona de competição e há um helicóptero e um ultraleve anfíbio de plantão para buscas, se necessário.

Foi em nome da segurança que a organização decretou o que chama de dark zones, ou seja, interrupções obrigatórias na corrida durante a noite. “A região é tão preservada que temos notícias de onças. Não queremos que os competidores encontrem uma pela frente”, brinca. Essa determinação vai, de certo modo, dar às equipes um momento forçoso de sono, coisa que, em competições do porte da Kaluanã, não costumam ser fundamentais para os atletas mais experientes.

Bárbara Bonfim, da equipe brasiliense Oskalunga, que lidera o Ranking Brasileiro de Corridas de Aventura, conta que a escolha das horas para descanso depende de cada prova e também do momento de cada atleta. “Se a corrida fosse ininterrupta a gente provavelmente viraria a primeira noite e, na segunda, daríamos cochilos de 20 minutos, quando necessário”, diz. “Dá para fazer 200 quilômetros sem dormir”. Pelas declarações de Bárbara, já deu para notar que antes de decidir participar de uma corrida dessas, é preciso se preparar muito bem, tanto fisicamente quanto psicologicamente.

Busca por patrocínio

Formada em 2001 apenas por estudantes, os quatro integrantes da Oskalunga treinam ciclismo, mountain bike, natação, canoagem e corrida, numa rotina para lá de puxada. “Tem que ter condicionamento muito bom, mas nem sempre conseguimos treinar juntos por causa dos horários de cada um”, diz Bárbara. E não apenas isso. “Nos finais de semana tentamos viajar para Pirenópolis e Chapada dos Veadeiros para treinar estratégia de equipe e navegação”. Mas é participando de muitas competições ao longo do ano que é possível se preparar melhor para as provas mais importantes. Essa presença constante nas competições foi essencial para que Oskalunga esteja no topo das melhores equipes brasileiras, mesmo tendo perdido o patrocínio da Brasil Telecom no final de 2005, depois de quatro anos financiados.

“O custo dessas corridas é altíssimo. São viagens freqüentes para lugares distantes, além dos equipamentos”, diz Bárbara. Com o patrocínio, Oskalunga conseguia viajar todo mês e conciliava estudo com treino. Eles representaram o Brasil em provas no Uruguai, Argentina, Chile, Escócia e Nova Zelândia, mas perto das equipes estrangeiras, a diferença ainda é muito grande. “Eles estão 10 anos na nossa frente”. Para Bárbara, essa disparidade se refere à oportunidade de treinar mais e comprar equipamentos de ponta, como remos de carbono, bicicletas leves, lanternas, mochilas e tênis muito bons. Mesmo assim, Oskalunga chegou em terceiro lugar – sua melhor colocação -, em 2003 e 2005, no Ecomotion, prova com cerca de 500 quilômetros, com maior visibilidade e premiação. Ela faz parte do circuito mundial de corridas de aventura e no ano passado aconteceu nas serras gaúchas, com equipes internacionais.

Como as demais equipes, Oskalunga desembolsou mil reais para participar da Kaluanã, não incluídas passagens aéreas nem alimentação dos competidores. Bellesi, organizador da prova, diz que o preço não está caro. “A gente dá transporte de Belém até São Geraldo do Araguaia, os caiaques, bicicletas e precisamos suprir muito bem as equipes de apoio”, diz. Geralmente, bicicletas, capacetes e coletes salva-vidas devem ser levados pelas próprias equipes.

Os atletas brasileiros correm não apenas para completar as provas, mas para conquistarem os patrocinadores ou darem visibilidade a eles. Isso garante que no ano seguinte a equipe continue a praticar o esporte profissionalmente. Paulo Sérgio Junior, da equipe paraense Açaí Power, por exemplo, quer ter um bom desempenho para elevar o nome do Banco da Amazônia, que o financia. Sua equipe está entre as cinco melhores do Pará e, mesmo tendo que conciliar o serviço em sua empresa de segurança eletrônica com o esporte, desde 2002 dá trabalho para os adversários. “Aqui no estado não existem lojas especializadas, temos que comprar os equipamentos de São Paulo, o que torna tudo ainda mais caro, sem falar em investimento em alimentação, academia, vitaminas”, diz. “O objetivo da equipe não é ser campeã do circuito paraense, mas divulgar o patrocinador e, assim, incentivar os esportes de aventura no nosso estado. Esta é a nossa bandeira”, resume Junior.

Pelo fato de a maioria dos competidores ter que tratar o esporte como hobby, não como profissão, as corridas de aventura atraem mais executivos e pessoas de poder aquisitivo – e, consequentemente, mais velhas. “Essas corridas exigem muito do lado psicológico. Atletas mais jovens têm muita explosão, mas muitas vezes não são tão bons em endurance (provas de longa duração)”, diz Ana Paula Brasil.

Corridas no Brasil

A Expedição Mata Atlântica (EMA) foi a primeira corrida de aventura organizada no Brasil, em 1998. De lá para cá outras empresas se envolveram no ramo, concentradas principalmente em São Paulo, onde o poder aquisitivo dos competidores é maior. Cada corrida tem três etapas, realizadas em épocas diferentes do ano e com níveis de dificuldade diversos, o que caracteriza um circuito. Entre os principais circuitos que acontecem por aqui destacam-se o EMA, Brasil Wild, Ecomotion e Gaia. Hoje, o esporte é considerado estabelecido no país, que tem registradas oficialmente no site AdventureMag – referência nacional de informações do esporte – 228 equipes, sendo 97 paulistas.

A primeira etapa da Kaluanã aconteceu em maio na Ilha de Cotijuba, na costa paraense, e, em julho, no município de Salinópolis, próximo a Belém. Apesar de organizar corridas no estado há cinco anos, passando por 21 municípios, apenas a partir do ano passado a Kaluanã entrou no circuito Try On Meeting. Trata-se de campeonatos realizados nos estados do Pará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande do Sul e Goiás, entre março e dezembro. As equipes vencedoras de cada estado ganham passagem para o Try On Adventure Meeting, no fim do ano, sendo que a grande ganhadora fatura o que mais busca: patrocínio da própria Try On para 2007.

Existem corridas de todos os tipos de duração e dificuldade. De acordo com Ana Paula Brasil, quem quiser começar no esporte deve dar preferência às provas curtas, com até um dia de duração e percurso entre 50 e 60 quilômetros. As corridas médias, como a Kaluanã, têm entre 120 e 200 quilômetros, e as longas, a partir de 500 quilômetros. São verdadeiras expedições, que requerem planejamento e preparo mais complexos das equipes. Em países onde o esporte tem mais tradição, como na Nova Zelândia, as corridas podem ter 800 quilômetros de extensão.

Mudança de comportamento

Quanto mais desafiadora a prova, mais valor os atletas dão ao que aprendem com a experiência que adquirem em lugares geralmente muito bonitos e pouco acessíveis. Eles falam muito na satisfação pessoal de ajudar a população local, geralmente pobre, com mantimentos, material escolar (como faz este ano a organização da Kaluanã) e até doação de tênis usados por eles mesmos a garis, como lembra Ana Paula Brasil. Eles assistem também a transformações radicais em hábitos cotidianos, como maiores cuidados com a saúde e conhecimento sobre o próprio corpo. “A gente muda para melhor, aprende a respeitar o limite dos outros e o nosso”, descreve Junior, da Açaí Power. E a maioria passa a procurar mais atividades ao ar livre e dar maior atenção às questões ambientais. “Viramos turistas dentro do próprio estado e corremos em áreas muito bonitas no litoral, na floresta, no Cerrado. Passamos a respeitar mais esses ecossistemas”, garante Junior. Para ele, esta Kaluanã em especial, realizada naquele pedacinho de floresta cercada pela devastação causada por décadas de exploração madeireira no leste do Pará, mostra que existe alternativa de desenvolvimento sustentável na Amazônia pelo exemplo dos esportes aventura. Basta olhar ao redor. Segundo dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), 76% do município de São Geraldo do Araguaia estão desmatados e ainda há 13% de florestas em pé.

Alguns atletas ouvem muita gente que reclama dos impactos negativos das corridas de aventura em ambientes naturais. Há oito anos competindo no Brasil inteiro, Ana Paula Brasil já viu de tudo, e atesta: a maioria dos praticantes é consciente e procura seguir as orientações dos organizadores de causar mínimo impacto nos locais. Além disso, quando as corridas acontecem em unidades de conservação, um acordo entre a autoridade ambiental responsável e a organização da prova define o que pode ou não ser feito.

A Kaluanã, por exemplo, se comprometeu a dar palestras aos competidores e à população local sobre questões ambientais, como costuma fazer há cinco anos, sempre nas cidades que recebem o evento. Bellesi, organizador da competição, informou que além de um projeto de plantio de mudas em mata ciliar, a Kaluanã fez um levantamento do potencial ecoturístico da região e elaborou um roteiro a ser entregue ao governo do Pará para que seja incentivada a formação de guias locais. “Temos uma pesquisa cultural, natural e arqueológica da região e vamos passar a comercializar passeios ecológicos a partir desta corrida de aventura, sempre com envolvimento das comunidades”, explica Bellesi.

O Parque Estadual da Serra das Andorinhas, que ainda não está aberto à visitação, apresenta, segundo informações do governo do Pará, pelo menos 80 sítios arqueológicos, 150 pinturas rupestres, 62 cavernas, 28 cachoeiras, mais de 150 tipos de árvores, 80 espécies de orquídeas, além de diversas populações de aves, mamíferos, répteis, anfíbios e peixes. Aventura assim, só mesmo para poucos.

Para mais informação sobre corridas de aventura no Brasil, acesse os sites AdventureMag, Ranking Brasileiro de Corrida de Aventura e Webventure.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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