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Pegadas da destruição

O ecoturismo, vendido a torto e a direito como ferramenta de conscientização ambiental, também pode ser um grande problema para a preservação da natureza.

25 de fevereiro de 2005 · 20 anos atrás

O Parque Nacional Torres de Paine, no Chile, é um paraíso com cerca de 2.500 km2 de montanhas e lagos impressionantes, que por muito pouco deixei de conhecer. Estive muito perto dele há cerca de oito anos, numa viagem pela Patagônia Argentina, mas faltou tempo para visitá-lo. Agora me arrependo de não ter aproveitado a chance, porque daqui para a frente o que vou encontrar não será mais tão bonito quanto era até poucos dias atrás. Um incêndio iniciado pelo fogareiro a gás de um turista da República Tcheca, acampado em área proibida, queimou pelo menos 7 mil hectares do Paine.

Os danos ainda não podem ser estimados, mas os efeitos do fogo, com certeza, serão observados por muitos e muitos anos. Algumas décadas se passarão antes que a natureza seja capaz de apagar mais essa lambança. Durante todo esse tempo, quem for ao parque – e especialmente os que o conheceram antes – verá uma paisagem de cortar o coração. O autor da obra, no entanto, voltou para casa depois de pagar uma multa equivalente a US$ 213, o máximo que a legislação chilena permite para casos em que o ato não foi intencional.

A história é muito parecida com o que aconteceu no Parque Nacional de Itatiaia, há cerca de cinco anos. Dois turistas se perderam dentro do parque e decidiram que a melhor forma de serem encontrados era pôr fogo na vegetação. Estavam a poucos metros de uma estrada. A idéia quase matou os dois, que tiveram que ser resgatados por bombeiros, voluntários e guarda-parques antes mesmos que eles pudessem cuidar das labaredas, e destruiu 600 hectares do parque. O estrago só não foi maior porque a chuva ajudou o trabalho de rescaldo.

Ironicamente, nesse caso, o fogo foi iniciado com os panfletos que os dois receberam na entrada do parque, alertando sobre os perigos de incêndio. Por seu brilhantismo, um dos turistas – o outro era menor de idade – foi “condecorado” com uma multa de 900 mil reais, de acordo com os artigos 40 e 41 da Lei de Crimes Ambientais, que aponta uma tabela de preços para os incêndios florestais: 1.500 Reais por hectare queimado.

Sejamos honestos: o fato de o ecoturismo estar na moda pode virar, em termos ambientais, uma praga. Esses dois exemplos, entre muitos outros, dão todas as evidências disso. Uma enorme proporção da humanidade freqüenta hoje os ambientes naturais simplesmente porque está na moda ou porque viu uma apresentadora de TV fazendo coisas parecidas, de biquíni e soltando gritinhos de “Uhu! Radical!”.

É uma forma adolescente de fazer a coisa, sem saber exatamente por que, talvez para imitar os amigios, mais ou menos como muita gente começa a fumar. E, assim, muita gente foi para o mato, de roupa camuflada, pichando pedra, gritando como Tarzã, embora ninguém mais veja filmes de Tarzã, levando rádios de pilha, bebidas e sabe-se lá mais o que em vez de equipamentos de sobrevivência. O lixo, claro, vai ficando pelo caminho, que ninguém é de ferro para carregar embalagem vazia de volta.

Esse tipo de gente não é endêmico do Brasil. Ao contrário, está por toda parte. O incêndio do Torres del Paine é apenas um exemplo. Recentemente, na Argentina, vi outro caso assim. A cerca de duas horas de Bariloche, no coração do Parque Nacional Nahuel Huapi, há uma montanha espetacular chamada Tronador – ou seja, “trovejante”, nome que deve aos blocos de gelo que se desprendem de seus glaciares estrondosas avalanches. Com mais de 3.500 metros de altura sobre o nível do mar, é a montanha que concentra o maior número de geleiras em todo o mundo. Sete glaciares ao todo, que deixam a montanha confeitada o ano inteiro como um ofuscante bolo de noiva.

Lá, mais ou menos na cota dos 2 mil metros, entre duas dessas geleiras e em um lugar de tirar o fôlego, há um refúgio de montanha chamado Otto Meiling – em homenagem a um dos desbravadores do turismo a região. O acesso exige certo preparo físico. São cerca de cinco horas de caminhada, quase o tempo todo em subida. A picada começa mais de mil metros abaixo. E a subida é feita por uma trilha paralela a uma estrada de carros 4×4, utilizada apenas pelos guarda-parques e pelo concessionário do refúgio para levar mantimentos até meia encosta, numa picape caindo aos pedaços.

Pois bem. No pé da montanha alugam-se cavalos. Bravos cavalos crioulos, acostumados a enfrentar as trilhas mais ásperas. Montado, chega-se muito perto do refúgio sem o desgaste da subida. É um sucesso de público a cavalgada até o Meiling e não haveria maiores problemas, se os cavalos ficassem na estrada de carros. Mas não é o que acontece. Eles fazem a picada de pedestres, que além de estreita, é muito íngreme. O resultado, com a ajuda da neve e dos conseqüentes degelos, é muita erosão. Os cavalos que levam os turistas estão roendo a encosta da montanha, dentro de um parque nacional.

Trata-se, portanto, de uma inversão de valores. No Brasil, a Lei nº 9.985 de 18 de julho de 2000, que criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, ou SNUC, determina em seu art. 7º, § 1º, que “o objetivo básico das Unidades de Proteção Integral (entre as quais estão os Parques Nacionais) é preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais”. Ou seja, os parques nacionais existem, primordialmente, para proteger a natureza – mais precisamente, nos termos da lei, “ecossistemas naturais de grande relevância”.

O ponto onde pretendo chegar é o seguinte: parque nacional não é parque de diversões. O uso turístico dessas áreas deve ser restrito e muito controlado. A lei do SNUC determina que o nível de controle necessário deve ser analisado caso a caso, de acordo com o plano de manejo de cada unidade. Do jeito que está, não está funcionando. Com mais freqüência do que não, volto dos passeios que faço nesses parques com os bolsos – ou até sacolas – cheios de lixo que encontro pelo caminho. O número de pedras e troncos de árvores com grafites é de dar engulhos.

Existe solução para isso que não seja proibir a entrada de pessoas? Acho que sim. O Parque Nacional Chapada dos Veadeiros, em Goiás, tem um sistema que me parece muito bom: nele só se entra acompanhado de um guia, contratado na comunidade local. O guia não só impede que o visitante faça besteiras, como ensina muita coisa sobre o parque, sua fauna, flora, geomorfologia e até sobre os problemas que este enfrenta com invasões e queimadas ilegais.

À primeira vista, essa exigência parece uma chatação para quem está ali para se divertir. Foi o que eu pensei de início na minha visita. Mas não é. E faz ainda mais sentido quando você percebe que, durante um dia inteiro de caminhada, não viu um papel de bala no chão. Uma bagana de cigarro sequer.

Ter um desconhecido como companhia o dia inteiro, e ainda por cima ser obrigado a pagar por isso, acaba sendo um preço muito baixo para se pagar por menos gritaria, menos lixo, enfim, menos impacto. Se este guia for bem preparado e o fato de ele estar ali significar que a comunidade local ganhou alguns empregos a mais, então, o inconveniente desaparece mais depressa ainda do que o lixo.

Um guia ao seu lado é um modo de lembrar que as Unidades de Conservação existem, em primeiro lugar, para preservar o pouco que nos resta em termos de recursos naturais. A diversão vem em segundo lugar, ao contrário do que imaginavam os inventores americanos dos primeiros parques nacionais, em meados do século XIX.

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