Notícias envolvendo a morte de poetas não costumam ser pautas em mídias especializadas em meio ambiente, mas Manoel de Barros não era qualquer poeta. O homem que descansou após lenta agonia num hospital em Campo Grande trouxe a simplicidade da vivência pantaneira para os anais da literatura nacional.
Versos como o do eternizado no poema “Retrato do artista quando coisa”, de 1998: “Fui criado no mato e aprendi a gostar das coisinhas do chão”, que dão pistas de como a natureza está densamente presente na vida literária de Manoel de Barros.
O legado de Manoel Wenceslau Leite de Barros abrange uma vasta obra cuja memória pessoal de sua infância, numa fazenda, com os pés no chão, em contato com caramujos e lagartixas, influenciou todo o seu trabalho ao longo dos seus 97 anos de idade.
Manoel de Barros teve seu primeiro contato com a literatura no Colégio São José, no Rio de Janeiro. Tornou-se admirador das obras do poeta francês Arthur Rimbaud, a quem chamou de o “renovador poético do mundo”. Era leitor frequente da Bíblia, que para Barros tinha dois aspectos: o místico e a parte literária. Achava o livro de Jó lindo e o de Eclesiastes, filosofia pura. Da literatura nacional gostava de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Augusto dos Anjos.
Como escritor, teve sua estreia com a obra “Poemas concebidos sem pecado”, em 1937, mesmo sem o estilo que o definiria até o fim de sua vida.
As intempéries da vida
Manoel de Barros formou-se em bacharel em Direito no Rio de Janeiro e filou-se ao Partido Comunista aos 18 anos. Após tomar conhecimento do apoio de Luiz Carlos Prestes a Getúlio Vargas, Barros rompeu com o Partido Comunista. Assim, voltou a morar no Pantanal. Em seguida, decidiu conhecer algumas partes do mundo morando na Bolívia, no Peru e em Nova York, onde fez curso de cinema e pintura.
Casou-se com Stella de Barros com quem teve três filhos: Pedro, João e Martha.
O poeta passou mesmo a ser conhecido aos 70 anos de idade, quando, nos anos 80, o chargista Millôr Fernandes publicou um poema de Manoel, no Jornal do Brasil, com a seguinte frase: “Veja, isso é que é poesia.” Depois disso, o filólogo Antonio Houaiss o apresentou ao Ênio Silveira, que era editor da Civilização Brasileira.
Considerado um dos escritores mais importantes do Brasil, Manoel de Barros também é conhecido internacionalmente por trabalhos publicados na França, em Portugal e na Espanha. Foi contemplado com vários prêmios literários, entre eles, dois Jabutis de Literatura. Em 2008, o cineasta Pedro Cezar realizou o documentário “Só dez por cento é mentira”, sobre a vida de Manoel de Barros e que ganhou os prêmios de melhor documentário longa-metragem do II Festival Paulínia de Cinema.
O sucesso e o reconhecimento não conseguiram apagar as marcas profundas de dois acontecimentos trágicos que afetaram profundamente Manoel de Barros: Em 2007, seu filho João sofre um acidente aéreo e morre aos 50 anos. Em Julho de 2013, o filho mais velho, Pedro morre em decorrência de um AVC.
Após a morte trágica dos filhos, a saúde de Manoel de Barros definhou. Aos 97 anos de vida, o poeta passou a viver de forma quase vegetativa: deitado numa cama, imóvel, sem andar e sem falar. Escrever passou a ser definitivamente parte do passado e sem direito a futuro algum. Uma situação que angustiava os familiares ao ver um homem que outrora foi tão cheio de vida e energia.
Até que, na última quinta (13), às 08h05, Manoel de Barros morreu de falência múltipla dos órgãos, deixando a poesia brasileira órfã de seu mestre. Vai-se o homem e fica a obra.
“Poesia a gente não descreve, a gente descobre”
Certa vez, Sigmund Freud disse: “Os poetas e os filósofos descobriram o inconsciente antes de mim. O que eu descobri foi o método científico que nos permite estudar o inconsciente.” E foi assim que Manoel de Barros trouxe o alicerce e as ferramentas necessárias a sua poesia: “Minha invenção é algo que vem do subconsciente, da imaginação criadora, busca do baú da infância, onde ficam guardadas as nossas primeiras sensações” afirmou no documentário Só dez por cento é mentira, de 2008.
Barros soube transformar palavras em imagens, dando-nos com precisão a dimensão geográfica, espacial e social da paisagem pantaneira. Ele deu um novo sentido à literatura brasileira ao dar valor e encanto às coisas. Chamou a nossa atenção ao simples, ao cotidiano, no sentido de despertar o nosso olhar, a nossa percepção de mundo. Junta-se a isso, o sentido simbólico da palavra-imagem que, muitas vezes, significa paz, solidão, harmonia, simplicidade.
No documentário Só dez por cento é mentira, ao ser perguntado para que serve a poesia, Manoel de Barros logo respondeu, com um sorriso espontâneo: “Poesia é a virtude do inútil (…) Poesia é uma coisa que a gente não descreve. A poesia, a gente descobre, a gente acha. Eu sou procurado pelas palavras. Não tem inspiração, eu não sei o que é isso, eu só conheço de nome. Sou excitado por uma palavra, ela me excita, se apaixona por mim. As amigas, que ela tem por aí, pelo mundo, se encontram pelo cheiro pra desabrochar num poema e desabrocha em mim, né? (…) Poesia é o belo trabalhado”.
Sua importância para a literatura nacional consiste na sua originalidade em relação à junção da natureza com a linguagem. Foi um poeta simples, criativo, que soube com suas palavras transportar a leveza da natureza para o fulgor da alma. Descreveu a si mesmo como O Apanhador de Desperdícios: “(…) Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que os mísseis. Tenho em mim esse atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios: amo os restos. Como as boas moscas…”.
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