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Algo além dos aviões de carreira

Crise do diesel levanta questão esquecida no país: a qualidade do ar. No Brasil, ainda não há lei federal voltada sobre a matéria, tornando o quadro legal bastante frágil.

1 de outubro de 2008 · 15 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

 

Naquele dia, — já lá vão dez anos! — o Dr. Félix levantou-se tarde, abriu a janela e cumprimentou o sol. O dia estava esplêndido; uma fresca bafagem do mar vinha quebrar um pouco os ardores do estio; algumas raras nuvenzinhas brancas, finas e transparentes se destacavam no azul do céu. Chilreavam na chácara vizinha à casa do doutor algumas aves afeitas à vida semi-urbana, semi-silvestre que lhes pode oferecer uma chácara nas Laranjeiras. Parecia que toda a natureza colaborava na inauguração do ano. Aqueles para quem a idade já desfez o viço dos primeiros tempos, não se terão esquecido do fervor com que esse dia é saudado na meninice e na adolescência. Tudo nos parece melhor e mais belo, — fruto da nossa ilusão, — e alegres com vermos o ano que desponta, não reparamos que ele é também um passo para a morte. (Machado de Assis)

“Por estas três pragas foi morta a terça parte dos homens, isto é, pelo fogo, pela fumaça e pelo enxofre, que saíam das suas bocas” (Apocalipse 9:18)

“Ar, maravilhoso ar” (os Muppets)

“O Ministério Público Federal em São Paulo (MPF-SP) e o governo do estado estão processando a Petrobras e a Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANP) pelo descumprimento de lei e norma que determinam a distribuição de diesel do tipo S-50 com menos enxofre, a partir de janeiro de 2009”.1 Esta notícia nos dá conhecimento de uma importante ação ajuizada com vistas ao exame judicial de uma questão extremamente relevante e que, em nosso País, tem sido relevada ao mais olímpico segundo plano. Refiro-me à qualidade do ar. No Brasil, o quadro legal utilizado para regular a qualidade do ar é bastante frágil, haja vista que não existe uma lei federal voltada para a matéria, ficando o tema submetido às variações de humores do Conselho Nacional do Meio Ambiente2, por força de uma competência genérica estabelecida pelos incisos VI e VII do artigo 8º da Lei nº 6.938/813. Da mesma forma, a ANP, sob o pálio de regular a qualidade dos combustíveis, também tem atribuições legais para “meter a colher” no assunto. Aqui temos um excelente tema para a reflexão daqueles que entendem que o nosso Direito Ambiental é “um dos mais avançados do mundo”, assertiva da qual discordo, respeitosamente. 

Como sabemos, a grande sensibilização para a questão da poluição atmosférica ocorreu em Londres, no ano de 1952, com o chamado “grande smog”. O acontecimento ocorreu em função de uma inversão térmica que se iniciou no dia 3 de dezembro de 1952 e, em poucos dias, acarretou forte recrudescimento das taxas de internações e mortes em função de problemas respiratórios. “O cheiro do fumo penetrava nos edifícios pelas portas e janelas abertas.” 4

Todas as grandes cidades do mundo enfrentam ou já enfrentaram problemas com poluição atmosférica, notadamente aquela causada por veículos automotores, as chamadas fontes móveis. No Japão, no ano de 2007, as montadoras de automóveis fizeram acordo com inúmeras pessoas que se sentiram prejudicadas em razão da poluição atmosférica, pagando-lhes indenizações por danos.

“Montadoras de automóveis e de veículos de carga vão indenizar cidadãos que se consideram vítimas da poluição do ar nas cidades. Trata-se da primeira ação do gênero no mundo. As marcas envolvidas neste caso, todas japonesas, são a Toyota, a Nissan, a Nissan Diesel, a Hino, a Mitsubishi, a Isuzu e a Mazda. Elas aceitaram pagar, para 520 queixosos, a quantia total de 1,2 bilhão de ienes (cerca de R$ 21 milhões). Essas companhias também contribuirão com 3,3 bilhões de ienes (R$ 57,74 milhões) para um programa de ajuda médica para os asmáticos de Tóquio. O acordo entre as montadoras e os queixosos foi concluído em 8 de agosto em Tóquio. Ele foi mediado pelo tribunal de recursos de Tóquio e pelo tribunal regional da capital. Os cidadãos que serão indenizados haviam dado queixas contra o governo japonês, a prefeitura de Tóquio, a companhia de auto-estradas Metropolitan Expressway Public Corporation e contra essas montadoras de automóveis.”5

A poluição atmosférica, contudo, não se restringe aos fatores decorrentes da circulação de veículos automotores. Muitas outras atividades são responsáveis pela turbação da qualidade do ar, tais como indústrias, estradas não-pavimentadas, aparelhos de ar condicionado, cigarros etc.

Um dos problemas mais complexos, em tal matéria, é o fato de que normas locais, dificilmente, conseguem dar conta do problema, pois o ar, assim como a água, não respeita fronteiras políticas e uma atividade realizada aqui, poderá causar problemas acolá. Muitos documentos do Direito Internacional estão voltados para disciplinar a chamada poluição transfronteiriça ou à longa distância.   

No Direito interno, o combate à poluição atmosférica é um dos campos mais propícios à existência de normas federais, pois as normas estaduais não são suficientemente capazes de impedir que “outros estados” sejam prejudicados por emissões locais. A União, contudo, tem sido omissa no particular e, até hoje, não existe uma lei federal apta a regular a qualidade do ar em nível nacional. As normas existentes são meramente de caráter regulamentar e, portanto, capazes de gerar polêmicas tais como a noticiada no início deste artigo.   De fato, o Estado de São Paulo, ao exercer as suas competências ambientais, fica tolhido pela atribuição da ANP em dispor sobre “combustíveis” que, no caso sob exame, é uma norma cujo caráter ambiental é inequívoco. 

A primeira norma brasileira (federal) que tratou do tema, ainda que genericamente, foi o Decreto-lei nº 1.413, de 14 de agosto de 1975 que instituiu as chamadas áreas críticas de poluição. Logo depois, a Lei nº 6.803, de 02 de julho de 1980 estabeleceu as diretrizes para o zoneamento industrial nas áreas críticas de poluição. No artigo 9º da lei ficou estabelecido que o licenciamento das atividades industriais deveria ser feito com o “atendimento das normas e padrões ambientais definidos pela SEMA”. Logo em seu primeiro inciso, foi dada ênfase à emissão de gases e vapores6.

Desde 1967, o antigo estado da Guanabara já praticava o controle da qualidade do ar, com a instalação de estações de monitoramento. Aliás, neste particular, o estado Rio de Janeiro, como demonstra relatório elaborado pela Feema, é exemplar: “O Estado do Rio de Janeiro, não só vem atendendo as ações previstas em todas as fases do Proconve, como também é o único estado que implantou o programa de I/M veicular, que vem sendo realizado desde julho de 1997, conforme preconiza a Resolução Conama 07.

Quanto à parcela de emissões oriundas de veículos a diesel, encontra-se em execução o Programa de Autocontrole de Emissão de Fumaça Preta, onde estão sujeitas ao programa todas as empresas transportadoras de cargas e de passageiros, que utilizam óleo diesel como combustível automotor e atuam no Estado do Rio de Janeiro. Em termos de controle das emissões de fontes, embora as novas fases do Proconve estabeleçam limites mais restritivos para emissões de poluentes, à partir de 2009, principalmente para os percussores de ozônio, a frota de veículos vem ao longo dos anos apresentando uma tendência de crescimento acentuada, ou seja, tais medidas isoladamente não serão suficientes para garantir a redução ou, tendência de estabilização do teor de poluentes oriundos de fontes móveis. Dentre as alternativas existentes, não podemos deixar de mencionar a necessidade urgente de melhoria da modal de transporte público e da matriz energética. O que mostra que a solução do problema não depende apenas do sistema de meio ambiente, mas de ações compartilhadas entre vários setores da sociedade, que direta ou indiretamente podem impulsionar prioridades políticas no que tange ao controle da qualidade do ar.” 7

A nossa legislação federal nasceu com cerca de dezessete anos de atraso em relação à Clean Air Act dos Estados Unidos, país cuja primeira norma nacional data de 1963 e, tal como a brasileira, não determinava nenhuma redução de material a ser lançado na atmosfera.  A Alemanha, desde muito tempo possui as suas “Luft und Luftreinhaltung Gesetze“. Sendo certo que o princípio da precaução ingressou no direito alemão, pela via da regulação da qualidade do ar, isto nas décadas de 70 e 80 do século passado.

A regulação do Enxofre tem sido muito importante, pois foi através do controle da chuva ácida que mecanismos de licenças negociáveis foram introduzidos. Ainda que as licenças negociáveis não sejam uma panacéia, elas permitiram uma efetiva redução do enxofre na atmosfera, muito embora haja forte crítica quanto aos motivos reais que levaram aos resultados: “Aparentemente, esse sistema respeitava as preconizações de Ronald Coase, deixando funcionar o jogo do mercado. E o “Acid Rain” conheceu verdadeiro sucesso: o objetivo previsto — redução de 40% nas emissões de SO2, em relação à situação de 1980 — foi alcançado e mesmo ultrapassado. Se examinarmos mais de perto, porém, não seria correto atribuir esse êxito ao mercado.

Em primeiro lugar, o fortalecimento da regulamentação, somado a um controle contínuo dos poluentes que saíam das chaminés, levou um bom número de empresas exploradoras a antecipar os trabalhos de adequação às normas. Além disso, a indústria do carvão desenvolveu produtos com baixo teor de enxofre, menos emissores de SO2, que se tornaram competitivos. Esses dois fenômenos explicavam em grande parte a forte baixa das emissões, com o comércio de autorizações no mercado intervindo apenas marginalmente . Porém, os efeitos colaterais não eram desprezíveis. O poder calorífico inferior do novo carvão com menos enxofre o levava a ser consumido em maior quantidade, o que aumentava mecanicamente as emissões de um outro poluente: o dióxido de carbono! Mas os defensores da não-intervenção do Estado retiveram apenas isto: o mercado das cotas é eficaz — portanto, pode ser generalizado.”8

Apesar da inexistência de uma lei federal, a qualidade do ar no Brasil tem melhorado.  As medidas de controle da poluição atmosférica têm obtido resultado, ainda que a atividade industrial tenha se ampliado.  Em Cubatão – situação limite – a emissão de poluentes teve queda de 98,8% nos últimos 25 anos, segundo dados da CETESB. Dois foram os fatores que deram margem a tal resultado: (a) maiores investimentos em tecnologia e (b) fiscalização mais adequada e atuante.  “A redução do índice de emissões de poluentes em Cubatão foi alcançada depois de uma parceria entre as indústrias e os órgãos fiscalizadores, mobilização da sociedade, conscientização ambiental e maior rigor da legislação.

De acordo com os técnicos da Cetesb, no início da década de 1980 a emissão de material particulado chegava a 363 mil toneladas/ano, marca que foi reduzida em 98,8%. No caso dos hidrocarbonetos, a queda atingiu  95,79%. Já a redução da emissão de fluoretos é ainda maior: 99,11%.  Técnicos da Cestesb constataram ainda que os óxidos de enxofre e a amônia, considerados grandes vilões por causarem a chuva ácida, que matava a vegetação da Serra do Mar, foram reduzidos em 72,17% e 99,43%, respectivamente. O lançamento de carga orgânica em corpos d’água também atingiu o objetivo proposto no início do Programa de Controle de Poluição: redução de 92,5%. No mesmo período, houve 28,3% de redução na captação de água e um aumento de 65,6% na recirculação da água no processo produtivo, somado à captação de águas pluviais”. 9

A discussão suscitada pela ação judicial mencionada no início do presente artigo é, evidentemente, fundamental. Aqueles que tiveram a felicidade de propô-la estão de parabéns, pois efetivamente, lançaram luz sob tema da maior relevância e, com brilhantismo, fizeram com que as medidas judiciais ambientais fossem direcionadas para questões de alta indagação, afastando-se do varejo tão comum no dia a dia forense. 

 

1 – http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2008/01/29/materia.2008-01-29.7027249679/view

2 – RESL-CONAMA-382-2006 Estabelece os limites máximos de emissão de poluentes atmosféricos para fontes fixas.  RESL-CONAMA-354-2004 Dispõe sobre os requisitos para adoção de sistemas de diagnose de bordo – OBD nos veículos automotores leves objetivando preservar a funcionalidade dos sistemas de controle de emissão. – RESL-CONAMA-299-2001 Estabelece procedimentos para elaboração de relatório de valores para o controle das emissões dos veículos novos produzidos e/ou importados. RESL-CONAMA-297-2002 Estabelece os limites para emissões de gases poluentes por ciclomotores, motociclos e veículos similares novos. RESL-CONAMA-256-1999 Aprova a inspeção de emissões de poluentes e ruídos por veículos automotores. – RESL-CONAMA-251-1999 Define os procedimentos, equipamentos e limites máximos relativos à emissão de fumaça dos veículos automotores do ciclo Diesel, complementares àqueles contidos na Resolução CONAMA nº 7, de 31 de agosto de 1993. – RESL-CONAMA-15-1995 Estabelece, para o controle da emissão veicular de gases, material particulado e evaporativa, nova classificação dos veículos automotores, a partir da data que indica. – RESL-CONAMA-8-1990 Estabelece, em nível nacional, limites máximos de emissão de poluentes do ar (padrões de emissão) para processos de combustão externa em fontes novas fixas de poluição com potências nominais totais até 70 MW (setenta megawatts) e superiores. – RESL-CONAMA-3-1990 Dispõe sobre padrões de qualidade do ar, previstos no PRONAR – Programa Nacional de Controle da Poluição do Ar. – RESL-CONAMA-10-1989 Resolução CONAMA 14/09/1989 18/12/1989 BR REVOGADO / VENCIDO Dispõe sobre limites de emissão de gases de escapamento por veículos automotores com motor do ciclo Diesel, e dá outras providências. – RESL-CONAMA-5-1989 Dispõe sobre o Programa Nacional de Controle da Poluição do Ar – PRONAR. – RESL-CONAMA-4-1989 Dispõe sobre níveis de emissão de hidrocarbonetos por veículos com motor a álcool, e dá outras providências- RESL-CONAMA-3-1989 Dispõe sobre níveis de emissão de aldeídos no gás e escapamento de veículos automotores. – RESL-CONAMA-18-1986 Institui, em caráter nacional, o Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores – PROCONVE, e dá outras providências.

3 – Art. 8º Compete ao CONAMA:  …………..VI – estabelecer, privativamente, normas e padrões nacionais de controle da poluição por veículos automotores, aeronaves e embarcações, mediante audiência dos Ministérios competentes;  VII – estabelecer normas, critérios e padrões relativos ao controle e à manutenção da qualidade do meio ambiente com vistas ao uso racional dos recursos ambientais, principalmente os hídricos.

4 – http://ladoverdedavida.blogspot.com/2008/02/um-caso-histrico-crise-de-smog-em.html

5 – http://www.ecolnews.com.br/indenizacao_vitimas_poluicao_veiculos.htm, capturado aos 29.09.2008

6 – Artigo 9° – O licenciamento para implantação, operação e ampliação, de estabelecimentos industriais, nas áreas críticas de poluição, dependerá da observância do disposto nesta lei, bem como do atendimento das normas e padrões ambientais definidos pela SEMA, pelos organismos estaduais e municipais competentes, notadamente quanto às seguintes características dos processos de produção:  I – Emissão de gases, vapores, ruídos, vibrações e radiações;

7 – http://www.feema.rj.gov.br/qualidade-ar.asp?cat=65 capturado aos 30.09.2008

8 – http://diplo.uol.com.br/2007-12,a2063, capturado aos 30.09.2008

9 – http://www.saopaulo.sp.gov.br/sis/lenoticia.php?id=97955&c=141, capturado aos 29.09.2008 

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