Reportagens

Além da Floresta Amazônica

A Amazônia é a única área de mata nativa cujo desmatamento é monitorado pelo governo federal. As demais estão na fila para ganhar um mapa de áreas remanescentes.

Carolina Elia ·
13 de maio de 2005 · 19 anos atrás

O governo já tem os números do desmatamento ocorrido no biênio 2003-2004 na Amazônia, mas ninguém disse ainda quando eles serão divulgados. É ruim, mas podia ser pior. Pelo menos por lá se sabe quanto o homem vem desmatando desde 1977. Nos casos do Pantanal, Cerrado, Caatinga, Mata Atlântica e outros ecossistemas brasileiros, o país não faz a mais pálida idéia do quanto deles se perde ano a ano. A razão é simples: sucessivos governos nunca se interessaram por monitorá-los.

O Ministério do Meio Ambiente só monitora o desmate na floresta amazônica. Um trabalho feito há 28 anos em parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e baseado em imagens de satélite. Apenas a Mata Atlântica recebe tratamento similar, mesmo assim por esforço da Ong que leva seu nome, a SOS Mata Atlântica. Em 1989 os seus integrantes procuraram o Ibama para fazer o primeiro levantamento dos remanescentes desta vegetação. Dois anos depois, a organização fechou uma parceria com o Inpe para fazer o monitoramento qüinqüenal do ecossistema. O último foi realizado em 2000 e constatou que sobram apenas 7,1% da mata que um dia cobriu 16% do país.

A primeira e única tentativa da União de fazer um levantamento dos recursos naturais foi o projeto Radambrasil, criado em 1970 pelo governo militar. O programa foi desenvolvido para conhecer a realidade cartográfica e as riquezas da floresta Amazônica, mas cinco anos depois foi estendido para todo território nacional. Até hoje os dados são usados como informação base pelo IBGE e outras instituições de pesquisa.

Agora, 30 anos depois, o Ministério do Meio Ambiente decidiu usar o último ano do Probio – um projeto assinado em 1996 com o Brasil e financiado pelo Global Environmental Facility (GEF) para a conservação e utilização sustentável da biodiversidade – para realizar o mapeamento e levantamento dos remanescentes dos seis principais conjuntos naturais do Brasil: Amazônia, Cerrado, Caatinga, Pantanal, Mata Atlântica e Pampas. O trabalho será feito em cima de imagens do satélite LandSat datadas de 2002 e tem que estar pronto até o fim do ano, quando acaba o financiamento . O projeto está orçado em 3,9 milhões de reais.

Para ganhar tempo, o ministério chamou ao trabalho instituições que já têm experiência com as áreas de estudo e montou seis grupos de pesquisa, um para cada ecossistema. Entraram no time a Embrapa , universidades federais e particulares e instituições como o Instituto de Estudos Socioambientais do Sul da Bahia (IESB). A largada foi dada em março.

Devido à falta de informação sobre o assunto, o ponto de partida de quase todos os grupos foi a estaca zero.“Avaliar a perda desses blocos de vegetação é complicado diante da ausência de dados sobre o que aconteceu no passado”, reconhece Paulo Kageyama, diretor de conservação de biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente e coordenador geral do programa de mapeamento. Nos pampas, por exemplo, o que se tem são dados do IBGE gerados a partir do Radambrasil e de trabalhos isolados realizados pelo Instituto na última década. Entre 1970 e 1996, o Rio Grande do Sul perdeu cerca de 3,6 milhões de hectares de campos naturais. Uma média de 137 mil he por ano. Quanto sobrou? Não se sabe, mas Heinrich Hasenack, professor da UFRGS e coordenador do grupo dos pampas, acha que a vegetação original está praticamente extinta. O tipo de campo natural que se manteve mais bem preservado foi o utilizado para pasto sem a inserção de espécies de plantas exógenas. “Áreas com estas características vão ser consideradas remanescentes”, explicou.

A mesma sorte não terá o cerrado, onde a cultura da pastagem detonou um processo de degradação que continua em franca expansão através da agricultura. Um estudo divulgado ano passado pela Conservação Internacional (o mais recente sobre o ecossistema) prevê o desaparecimento total do Cerrado até 2030. Isso acontecerá se parte dos 34% de áreas nativas remanescentes continuar a perder 2,2 milhões de hectares por ano. Para o professor Altair Barbosa, diretor do Instituto do Trópico Subúmido da Universidade Católica de Goiás e especialista em Cerrado, esta previsão chega a ser otimista. Segundo ele, resta muito pouco da vegetação original em bom estado de conservação.

A página do Ibama na internet ostenta que o Cerrado brasileiro é reconhecido como a savana mais rica do mundo em biodiversidade. Ele tem áreas de transição com a Amazônia, o Pantanal, a Mata Atlântica e a Caatinga. Esta fusão o levou a desenvolver diferentes tipos de vegetação e uma riqueza biológica acima da média. As pesquisas realizadas até agora identificaram 10 mil espécies de plantas, 4.400 endêmicas. “A natureza dotou esta região de certos mecanismos naturais que garantem a multiplicação e a propagação das espécies”, afirma Barbosa, “ mas a biodiversidade animal está diretamente relacionada à diversidade de ambientes.”

Segundo o pesquisador, as sub-regiões do cerrado estão depauperadas. As áreas de florestas, que ocupavam manchas de solo de alta fertilidade, foram as primeiras a serem devastadas para dar lugar a cidades e atividades econômicas. Hoje não sobrou nem 2% da cobertura original. Os campos também cederam espaço para a agricultura a partir da década de 70 e estão totalmente descaracterizados. “Em termos de população vegetal não existe mais”, diz Barbosa, que também desafia outros conhecedores da região a apontarem uma área de cerradão intacta. Para ele, o ambiente mais bem preservado é o que engloba as veredas e as matas ciliares. Ainda que elas tenham perdido 84% de sua área original.

Não é à toa que Edson Eyji Sano, pesquisador da Embrapa Semi-árido e responsável pelo grupo do Cerrado, acredita estar colaborando para a produção do mapa de uso antrópico mais completo já feito no Brasil. O seu núcleo pretende apontar desde modificações produzidas pela agropecuária até áreas alagadas pela construção de barragens.

A antropização também é um pesadelo para a Mata Atlântica. Junto com os campos sulinos de araucárias, ela abriga 70% da população brasileira (112 milhões de pessoas) e as maiores cidades e pólos industriais do país. A ocupação humana fez com que a floresta se fragmentasse pelos 17 estados que um dia ela ocupou. Uma pesquisa feita pela SOS Mata Atlântica e o Inpe mostra que estados como o Rio de Janeiro, que há 500 anos era 100% coberto por Mata Atlântica, preservou apenas 22% da vegetação. A área de floresta no Paraná caiu de 97% para 9% no mesmo período. E apenas 5% dos bosques de araucárias sobreviveram á política do desmatamento.

Estes dados foram organizados e batizados de Atlas dos Municípios da Mata Atlântica e disponibilizados na internet. “Na primeira semana tivemos 80 mil acessos”, conta Mário César Mantovani, diretor Institucional da SOS Mata Atlântica. “As pessoas não sabiam que moravam na floresta”. Os moradores da região começaram a relatar detalhes sobre as reservas próximas de suas casas. Um, por exemplo, avisou que uma mata identificada no mapa não existia mais porque tinha sido cortada há poucos meses. O interesse pelos dados levou a Ong a desenvolver o “Indicador de Qualidade da Mata Atlântica”, que mostrará se os municípios estão preservando ou degradando as matas. O programa deve ser implementado em 2006 e nasceu da procura da população por mais informação sobre o ecossistema.

No dia 13 de maio, o IBGE divulgou o perfil ambiental dos municípios brasileiros e a maioria das prefeituras destacou a queimada e o desmatamento como um problema. “O país como um todo se queixa. Com exceção de lugares onde a ação é feroz, como por exemplo no entorno da BR-163, que liga Cuiabá a Santarém,” comentou Jadicael Clevelario Junior, do IBGE. Diferente dos desmatamentos, as queimadas são monitoradas em todo Brasil pelo Inpe e os dados são disponibilizados diariamente ao público. “Queima-se muito mais do que se desmata”, garante o pesquisador Alberto Setzer, do Monitoramento de Queimadas do Instituto. “ Praticamente todo desmatamento é seguido de queimada e além da vegetação natural queima-se pastos e plantações.” Em 2004 foram detectados 235.480 focos por todo país, mas este número é apenas uma fração da realidade uma vez que o satélite só registra as queimadas quando não há nuvens e quando elas tem mais de 30 metros de extensão. Este ano já foram registrados quase 9 mil focos de fogo. A maioria na Amazônia e na Caatinga.

A Caatinga é o único ecossistema exclusivamente brasileiro, mas nem por isso é considerada patrimônio nacional pelo Artigo 225 da Constituição Federal, que lista como tais apenas a Floresta Amazônica , a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal mato-grossense e a Zona costeira. Este artigo é o que determina que a utilização desses ecossistemas será feita na forma de lei e dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente , inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.

Desde o descobrimento do Brasil a caatinga é explorada para fins agropecuários e desmatada para alimentar as carvoarias da região. Segundo dados do IBGE de 1993, 68% deste domínio natural foi submetido a algum grau de antropismo.

A caatinga é o ecossistema menos estudado do Brasil e o que possui menos unidades de conservação, mas sabe-se que ela abriga diversas espécies em extinção. Incluindo a Ararinha azul e arara-azul-de-lear. Uma avaliação do estado do ecossistema encomendado pelo Ministério do Meio Ambiente à Conservação Internacional alertou que algumas áreas estão sofrendo um intenso processo de degradação e já apresentam pontos de desertificação. “Não existe um mapeamento de toda a caatinga, apenas o de algumas regiões específicas”, afirma Washington da Franca Rocha, coordenador do grupo responsável pelo levantamento deste ecossistema. “ O que se tem é o mapa de vegetação do IBGE, realizado em uma escala macro e pouco detalhado.” O mapa do IBGE foi realizado pela primeira vez na década de 80 e baseado em informações do Radambrasil. Nos últimos anos sofreu atualizações regionais e a terceira edição foi lançada no ano passado. O mapa foi citado por todos os grupos como uma das poucas, quando não a única, referência sobre os ecossistemas brasileiros.

O coordenador-geral do Projeto, Paulo Kageyama, afirma que o mapeamento dos remanescentes é essencial para elaborar qualquer política pública de preservação. Pena que o governo despertou interesse tardio pelo problema. O único ecossistema que ainda tem condições de esperar por uma solução é o pantanal.Segundo João Vila da Silva , coordenador do grupo que analisará a região, menos de 10% foi desmatado. Por se tratar da maior planície de inundação contínua do planeta, ela não é apropriada para a agricultura e outras atividades econômicas. A pecuária deu certo, mas hoje está em decadência. As maiores ameaças ao pantanal vêm do alto, dos planaltos que foram convertidos em grandes plantações de soja e de outros grãos. A produção está provocando o assoreamento dos rios e a poluição dos mesmos por fertilizantes e esgoto. “O que acontece no planalto afeta diretamente a bacia hidrográfica do Pantanal”, diz João, matemático por formação que há anos soma em seus estudos a degradação provocada por particulares a um bem nacional cuja usurpação a União não se preocupa em controlar. Nem mesmo monitorar.

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