Você abre os olhos e te dizem que está na floresta amazônica. Mas você não sente a umidade, não vê os animais nem folhas verdes. O solo avermelhado de uma clareira indica que enormes toras de madeira aguardaram transporte ali. E, ao seu redor, os troncos secos que continuam em pé estão ocos e enegrecidos pelas cinzas da queimada que passou há poucos dias. Está muito quente e você se dá conta de que ali praticamente não há mais vida. Não te enganaram. Isso é a Amazônia em um dos 312 polígonos de desmatamento identificados pelo Deter (Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real), do Ibama entre as cidades de Vera e Feliz Natal, no norte de Mato Grosso.
Seja você mais ou menos sensível, a energia desse lugar não é nada boa. Imaginar que ali a floresta já foi exuberante e, de repente, cair na real para testemunhar a sua morte provoca uma sensação de impotência, perplexidade, choque. Precisei de um dia inteiro acompanhando essa nova condição da floresta para começar a entender a gravidade do que acontecia diante de mim.
Desde o início da viagem de Cuiabá para o norte do estado, tive alguns indícios de que não seria no norte do Mato Grosso que eu iria conhecer a Amazônia, a começar pela decolagem. As 6h30 da manhã o piloto do avião do Greenpeace Fernando Bezerra foi orientado a mudar seu plano de vôo de visual para instrumento por causa da fumaça das queimadas sobre a capital de Mato Grosso, que não deixava enxergar quase nada. “Os aeroportos fecham com muita freqüência por aqui. Porto Velho, Sorriso, Sinop, todas essas cidades, já estou acostumado”. Por sorte, a poluição foi se dissipando com o passar das horas para revelar, lá embaixo, o império da soja.
São quase 5,5 milhões de hectares do grão plantados em Mato Grosso, segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) – boa parte dentro da Amazônia Legal, onde cada propriedade deveria manter 80% de área intocada. Nem de longe é o que acontece. De amazônica, as fazendas só conservam sua dimensão. Somem no horizonte, mesmo vistas a cerca de 3 mil metros de altitude. Têm desenho retilíneo e avançam sobre a mata fechada, com ou sem rios por perto. Parece que, por uma questão de aparência, os proprietários deixam um fragmento evidentemente pífio de floresta sufocado pelas lavouras. Dá também para ver verde nesse universo amarelado pela seca e pela soja ao redor da sede das fazendas, por causa disso localizáveis do alto com muita facilidade. Triste mesmo é reparar que algumas delas não tiveram pudor de manter, nem ali, vegetação nativa. Colocaram eucaliptos.
Por vezes, durante o sobrevôo, apareceram fragmentos que, de longe, poderiam ser reservas legais. Mas em rasantes, surgia sempre a dúvida. Preservadas essas áreas não estavam. Muitos dos fragmentos verdes têm clareiras e, a partir delas, uma complexa rede de estradas clandestinas cruza o interior das florestas para a retirada das madeiras mais nobres. Esses são os sinais da primeira fase da devastação da mata. Acontece assim. As árvores mais importantes são todas retiradas – de qualquer jeito. “Os homens entram, derrubam tudo, criam uma clareira e, para continuar extraindo dali nos próximos dias, não usam o mesmo caminho. Vão abrindo outros e a destruição se generaliza”, explica Marcelo Marquesini, engenheiro florestal do Greenpeace. O que sobra é queimado e roçado até que comecem os procedimentos de correção do solo com calcário e plantações primárias como o arroz. Aí, basta esperar dois anos, em média, para cultivar a soja, que, aliás, também vem ocupando áreas de pastagens desgastadas e desativadas no norte de Mato Grosso.
A monotonia da paisagem só acabou quando aterrissamos em Sinop, a maior cidade da região, com cerca de 100 mil habitantes. Trata-se de um município jovem, com apenas 30 anos, que adotou a sigla de uma colonizadora sulista em homenagem às raízes dos pioneiros. Sinop significa Sociedade Imobiliária do Norte do Paraná. A exemplo de diversas cidades norte-matogrossenses, além dos paranaenses, catarinenses e gaúchos chegaram em peso para cuidar daquela região com todo o carinho que o agronegócio requer. O sotaque sulista e os olhos claros típicos dos forasteiros estão em todo lugar. Da periferia às lojas mais sofisticadas de Sinop, que se tornaram referência no estado. Às margens da BR-163, a economia da cidade começou sustentada basicamente pela atividade madeireira, e ainda hoje marca profundamente o local. Principalmente em tempos de crise provocada pela Operação Curupira, o que é sensível, por exemplo, quando até a manicure do salão de beleza começa a reclamar do Ibama porque os homens de sua família perderam emprego no corte de madeira.
Mas quem fala com mais propriedade sobre a questão são os que tentam gerenciar a crise no conforto do escritório do Sindicato das Madeireiras do Norte do Mato Grosso (Sindusmad), o maior do estado e que congrega mais de 300 empresas. Antes de comentar a situação do comércio madeireiro, no entanto, o superintendente da Sindusmad, o gaúcho Américo Pértile, brinca para ir logo ao ponto. “Você está vendo, o sindicato é pobre, não tem dinheiro”. “Só quero fazer um pedido: me reservo ao direito de não responder perguntas picantes, se é que você me entende”. Como não.
Segundo Pértile, metade das madeireiras de Sinop foi diretamente afetada pela Operação Curupira, o que causou demissões em massa e uma queda no beneficiamento de madeira de 700 para 300 metros cúbicos por dia. “As ovelhas negras são gente do próprio Ibama e agora o setor inteiro foi penalizado”, reclama. De fato, depois que 141 madeireiras de Sinop foram flagradas cometendo irregularidades, o Ibama passou a exigir o recadastramento de todas as empresas para que obtenham as Autorizações para Transporte de Produtos Florestais (ATPFs) novamente. Com os poucos funcionários de que dispõe, esse trabalho demora. “Precisaríamos ter um número de servidores três vezes maior para darmos conta das nossas necessidades”, diz o gerente José Geraldo de Araújo, que conta atualmente com cinco fiscais e 14 analistas para cuidar de uma área superior ao estado do Paraná.
O superintendente do sindicato fica ainda mais irritado porque tem certeza de que as madeireiras associadas à sua entidade não estão envolvidas com nenhum tipo de crime. “Nós temos plano de manejo. Retiramos a madeira de modo que o impacto seja o menor possível”, garante Pértile. Não é isso que as imagens aéreas da região demonstram, nem a opinião de quem já esteve à frente da fiscalização do Ibama. “Em geral, a qualidade dos planos de manejo é baixíssima. Com um agravante: quando o Ibama concede o manejo não tem condições de conferir se a empresa está obedecendo”, diz Marquesini.
De repente, no meio da conversa, de madeireiro Pértile virou sojeiro, na tentativa de legitimar a atividade de seus conterrâneos em Sinop. Para isso, usou o argumento nacionalista que continua vivo em seu discurso para explicar, em bom português, porque está imune de críticas. “Nós viemos para cá a pedido do governo militar para desenvolver, trabalhar na terra. Para integrar e não entregar”. E continua. “Com a soja, temos a responsabilidade de alimentar o povo brasileiro. Nosso povo precisa de comida e o madeireiro verdadeiro precisa da árvore em pé”, justifica. “A gente tem que plantar em grande quantidade senão não vale a pena”, diz ele, fazendo questão de ressalvar que é contra a devastação.
O mesmo afirmam os representantes dos agricultores, que questionam os números do desmatamento em seu estado. Na sede do Sindicato Rural de Sinop, os produtores aguardam com grande expectativa a data em que deve entrar em vigor uma nova referência para determinar a vegetação no Brasil, um estudo elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e pelo Ministério do Meio Ambiente. Pelo novo mapa, as florestas deixam de ocupar 55% de Mato Grosso e passam a compor apenas 15% do estado. E, de acordo com ele, Sinop aparece como “área de contato” – um novo termo, que os produtores estão considerando como de transição. O mapa também considera que no entorno da cidade existem áreas de atividades agrárias, o que, para os produtores, significa sinal verde para a expansão da fronteira agrícola. “Nosso estado foi inserido na Amazônia Legal na época da Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia). Agora não existe mais Sudam”, diz o porta-voz do sindicato, Clayton Arantes. “É a ciência que está dizendo, não tem como duvidar”.
O gerente do Ibama discorda. “Sinop está em área de vegetação ombrófila aberta. Áreas de transição são geralmente pequenas, não algo desse tamanho”, opina Araújo. Firmes, os produtores se defendem. “Nós até que somos preservacionistas. Respeitamos as margens dos rios e a nossa agricultura é uma das mais avançadas do mundo”, diz Arantes. O produtor Antônio Galvão, candidato à presidência do sindicato, não gosta de ser considerado vilão nessa história e já tem até uma solução para a natureza que os onera no norte de Mato Grosso. “É fácil dizer por aí que o pessoal de Sinop tem que arcar com o prejuízo de manter a floresta em pé. Se querem que dentro da nossa fazenda a gente não mexa na floresta, deviam criar um fundo mundial para indenizar o proprietário”.
As raízes sulistas dos produtores de Sinop não os permite cogitar a possibilidade de tirar proveito de outros serviços ambientais da floresta. Quando perguntado por que não fazem manejo ou extrativismo da área, Galvão corta a conversa. “Não é nossa cultura viver do extrativismo. A gente planta para colher, não só colhe”. E ponto final. Arantes tenta se explicar melhor. “Nessa região, a floresta é seca. Não dá para sobreviver do extrativismo”, diz ele, esquecendo-se de que ali bem perto sobrevive um dos últimos remanescentes de castanheiras do estado. Aliás, motivo de um protesto do Greenpeace que denunciava o desmatamento ilegal perto da cidade de Cláudia.
Por causa desse protesto, foi só saber que a ong estava nos arredores que o produtor Adilson Jacinto da Silva entrou no Sindicato Rural de Sinop descontrolado. Como se, junto com os demais agricultores, Adilson ignorasse a proibição de realizar queimas durante a estiagem, ele foi logo ameaçando colocar fogo nos ativistas e em todos os equipamentos do Greenpeace se encontrasse um deles em sua frente. Na cabeça dos produtores, o motivo de tanto ódio é a crença da iminência que venham para o país organizações não-governamentais estrangeiras com a intenção de dominar as riquezas nacionais. “Temos que ficar em alerta, eles estão por aqui. Desta vez não entraram na nossa propriedade, mas passaram perto. Podia ter sido com a gente”. Quando souberam da novidade, o clima mudou totalmente no sindicato. E os outros produtores avisaram. “Vai dar morte, vai dar guerra, eles não podem vir aqui e querer tirar a nossa terra”, disseram.
Um dia depois de a notícia ter se espalhado, duas caminhonetes interceptaram dois dos carros do Greenpeace, que não tinham qualquer identificação da ong, na estrada de terra que dá acesso à Cláudia. Chamaram os ativistas, e deixaram uma única pergunta no ar. “O que vocês querem no nosso país?”.
Pergunta parecida fazem os mato-grossenses vendo estado tomado pelos sulistas que enriquecem fácil com a expansão da soja. Mas nem todos se dão bem. Na periferia de Sinop, encontrei uma paranaense que desde 1978 vive na cidade. Antes de parar ali, no entanto, dona Marisa da Cruz passou por Colider, ainda mais ao norte do Mato Grosso. O pai sonhava em plantar café e levou a família para tentar a vida onde diziam haver riqueza. Naquelas terras achou violência. O pai foi assassinado e dona Marisa se estabeleceu na pequena Sinop, que na época tinha suas poucas casas abastecidas por um gerador. Aos 43 anos, dona Marisa continua reclamando da violência, desta vez provocada pela onda de desemprego no setor madeireiro, que a deixou sustentando oito pessoas com salário de gari da prefeitura. Hoje ela diz que as coisas mudaram em Sinop. Não sabe por que, mas conta que ultimamente têm acontecido fortes chuvas e ventanias, como nunca havia presenciado antes.
Também nunca tinha visto repórter de O Eco, da Agência Reuters e da TV Bandeirantes batendo em sua porta para uma conversa. E, com essa gente diferente, teve outra descoberta. “A senhora gosta das coisas da Amazônia?”, perguntei. Ela disse: “Não sei, não. Só conheço pela televisão”. Depois de estarrecidos por essa resposta, insistimos: “A senhora acreditaria se a gente te dissesse que a senhora está na Amazônia?”. Com um sorriso desconfiado, ela concluiu: “Tudo é possível, né?”.
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