Reportagens

Risco de incêndio

Depois de perder 250 mil hectares de floresta nos incêndios de 2005, o Acre vive o conflito entre produtores rurais e Justiça sobre como lidar com o fogo daqui para frente.

Gustavo Faleiros ·
20 de dezembro de 2006 · 17 anos atrás

O Acre não está a salvo de viver novamente a destruição florestal provocada em 2005 pelas queimadas. Um relatório da Universidade Federal do Acre (UFAC) mostra que além dos 250 mil hectares transformados em cinza naquele ano, existem mais 267 mil hectares de florestas danificados e suscetíveis a incêndios. Os satélites puderam observar mudanças na coloração da copa das árvores que sobreviveram ao fogo. E isso quer dizer que se não houver um controle dessas áreas, o estado poderá definitivamente atingir um nível irreversível de degradação.

“As florestas afetadas são combustível pronto para queimar, não é mais preciso condições climáticas adversas para que tenhamos grandes incêndios novamente”, alerta Sumaia Vasconcelos, pesquisadora do Centro de Estudos de Uso de Terra da UFAC. O exemplo, está na fronteira. Ano passado, o Ministério Público (MP) do Acre moveu uma ação preventiva que proibiu o uso do fogo entre os meses mais secos, de julho a setembro. Isso contribuiu para que no estado fossem detectados cerca de 2,5 mil focos de calor contra os 12 mil captados pelos satélites em 2005. Nas regiões fronteiriças no Peru e na Bolívia, onde não foram tomadas medidas de prevenção e controle, o número de pontos de incêndio não retornou aos patamares anteriores a 2005. Ou seja, em 2006 houve mais incêndios do que a média histórica.

Com receio do que o uso do fogo – já enraízado na cultura acreana – possa provocar, o Ministério Público Estadual prepara para 2007 uma ação civil pública que pedirá à Justiça Federal que proiba para sempre a queima em largas áreas de capoeiras, uma medida que afetará os grandes pecuaristas do estado.

Para lidar com os pequenos agricultores, o MP quer obter dos governos federal e estadual um compromisso de oferecer alternativas ao uso do fogo, como programas de treinamento em novas técnicas e crédito para a compra de máquinas de preparação do solo. Patrícia Rego, chefe da divisão de Meio Ambiente do MP, explica que a intenção é obrigar o poder público a assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com um cronograma para banir as queimadas na produção agropecuária. “Se a Constituição determina que o Estado deve zelar pelos recursos naturais, ele está descumprindo a lei ao permitir queimadas”, argumenta a promotora.

Com sua estratégia de coibir totalmente o uso do fogo, a Justiça do Acre pode definitivamente influenciar os rumos do desmatamento na região. Há mostras de que isso já pode ter ocorrido em 2006. O Sistema de Detecção em Tempo Real (Deter) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) indicou que o desflorestamento no estado cresceu ‘apenas’ 4% no ano passado comparado a 2005. Na interpretação de pesquisadores UFAC, o rigor da regra permitiu que a degradação permancesse estável, algo em torno de 500 a 600 quilômetros quadrados por ano.

A partir do ano 2000, o desmatamento no Acre começou a crescer a taxas consideráveis. No biênio 2003/2004, por exemplo, o total de áreas degradadas foi 83% maior do que em 2000/2001. Mas já em 2004/2005 a tendência de crescimento deu sinais que poderia inverter a rota, pois houve uma queda de 30%, para 541 mil quilômetros quadrados. Agora, passadas as queimadas, e a indicação do Deter de que o desmatamento cresceu na faixa de 4%, resta saber a que ritmo vão seguir os índices no estado. “Tivemos três anos de crescimento, um ano de queda e outro de estabilidade. Ainda não é possível dizer se a tendência do desmatamento é diminuir”, analisa Irving Foster Brown, pesquisador Centro de Pesquisa Woodshole e professor da UFAC.

Na contramão

Quem não está satisfeito com os rumores de mudanças na política ambiental do Acre para evitar mais queimadas e desmatamento são os grandes pecuaristas do estado. No debate sobre o zoneamento ecológico-econômico, o governo do petista Jorge Viana já avisou ao setor agropecuário que não quer mais um hectare de floresta derrubado. Hoje, 10%, ou 1,6 milhões de hectares de todo o Acre já estão desmatados. Mas os maiores donos de cabeças de gado queriam estabelecer um limite de 16% de desmatamento no zoneamento. Não conseguiram.

Isso não significa que os produtores rurais vão apelar e descumprir a lei. Mesmo porque há formas legais de derrubar floresta para aumentar pastagens, e a principal delas é a concentração fundiária. Isso já está ocorrendo nas margens da BR-317, a chamada Rodovia do Pacífico, que liga o Brasil ao Peru. Com o término do asfaltamento da estrada até a fronteira, já é possível ouvir histórias de antigos colonos da reforma agrária que estão vendendo suas terras para grandes produtores de gado. É na BR-317 que estão as maiores fazendas do Acre, com até 20 mil cabeças de gado. É também na zona de influência da estrada que estão até 70% das queimadas registradas no estado.

O rebanho bovino acreano é o que mais cresce na Amazônia. Hoje existem cerca de 2,1 milhões de cabeças de gado no Acre. De acordo com o IBGE, nos últimos 34 anos as pastagens do estado cresceram 2.000% e as cabeças de gado, 2.700%. Hoje, 81% das áreas desmatadas estão ocupadas por pasto. O presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Acre, Assuero Doca Veronez, não tem dúvidas que a vocação do estado é a atividade agropecuária. Para ele bastaria comparar as riquezas geradas pela venda de produtos acreanos para outros estados: 77,2% das receitas é proveniente da pecuária bovina, enquanto 21,4% vem do extrativismo e apenas 1,3% da agricultura.

Não por acaso, Assuero foi contra a proibição de queimadas pela Justiça em 2006. E disse que por isso foi perseguido pelos órgãos ambientais do estado. Como um dos maiores criadores de gado no Acre, ele foi acusado de desmatar ilegalmente 4 hectares em sua propriedade, que está à beira da BR-317. Perguntado sobre o banimento permanente do uso do fogo, que é preparado pelo MP estadual, Assuero garante que a federação vai novamente se colocar contra. “Essa posição é fruto de radicalismo, tomada sem se perceber que o fogo é indispensável ao pequeno e médio produtor”, diz.

De fato, hoje é difícil conversar com um produtor no Acre que tenha outro método de plantar e limpar o pasto que não seja “brocar” a mata (desmatar na linguagem local) e queimá-la depois. José Schumacher, um médio produtor com uma fazenda de 700 hectares na região do alto rio Acre, conta que neste ano ele seguiu a regra e não queimou suas capoeiras para formar pasto. Mas não sabe como será daqui para frente. “Com toda esta fiscalização, eu não sei como que vou limpar o pasto”, questiona-se.

Impacto dos pequenos

A proibição das queimadas em 2006 teve impacto sobre a renda dos pequenos proprietários. A derrubada para o plantio foi liberada só em outubro, mês de início das chuvas. Muitos não conseguiram, ou não quiseram queimar. Dos 100 hectares que Manoel da Silva Cunha comprou de um amigo há 15 anos, restam apenas quatro com floresta intacta. Durante todo esse tempo, a rotina do agricultor tem sido derrubar e queimar alguns hectares para colocar o gado e fazer o seu roçado. Com a proibição do fogo, Manoel, assim como muitos agricultores, não abriram novas áreas de pastagem e roça. “Este ano eu já vou ter que comprar no mercado os produtos que plantava”.

No Acre, 96% das propriedades rurais são de pequeno e médio porte. Ou seja, para lidar com o desmatamento é imprescindível buscar soluções para estes produtores. Judson Valentim, pesquisador da Embrapa Acre, opina que o combate ao desmatamento está muito focado em ações policiais que estampam grandes fazendeiros em páginas de jornal, enquanto os pequenos continuam derrubando seus poucos hectares todos os anos sem que sejam incomodados ou recebam incentivos para mudar.

Para ele, o primeiro passo é acabar com o mito que é só possível ter pasto e roçado utilizando-se o fogo. Na Embrapa, Valentim faz parte de um núcleo que está tentando difundir o chamado boi verde pelo Acre. É um método de produção que confina o gado em uma área menor com um pasto de boa qualidade para que engorde mais rápido. Ao mesmo tempo, outras áreas de pasto são deixadas em descanso para que o gado tenha alimento quando terminado o capim da primeira área. Assim, cercando os bois em um talho de pasto de cada vez, é possível interromper a degradação do solo e evitar que se derrube mais floresta para plantar mais pasto. “É possível dobrar o número de cabeças de gado no Acre sem ocupar novas áreas”, garante o pesquisador.

A fazenda de Manoel da Silva Cunha é uma das que está sob experiência da Embrapa. Ao mesmo tempo que faz o manejo de pasto, ele refloresta as áreas de preservação permanente e também sua reserva legal. Mesmo no pasto, a Embrapa está incentivando o plantio de árvores, pois com sombra há aumento de produtividade; o gado fica parado e engorda mais.

O relatório da UFAC sobre os incêndios de 2005 ressalta que a grande maioria das áreas de floresta danificadas que estão prontas para queimar localiza-se próxima a propriedades rurais. Portanto, ou se dá aos produtores alternativas ao uso dos fogo ou veremos o Acre empobrecer sob uma espessa cortina de fumaça.

  • Gustavo Faleiros

    Editor da Rainforest Investigations Network (RIN). Co-fundador do InfoAmazonia e entusiasta do geojornalismo. Baterista dos Eventos Extremos

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