Reportagens

Crime ambulante

Com 28 mil km de estradas, Mato Grosso não fiscaliza precários caminhões que levam toras. Se respeitassem o código de trânsito, os reflexos seriam positivos para a natureza.

Andreia Fanzeres ·
29 de novembro de 2007 · 16 anos atrás

Mesmo em época de chuvas, os caminhões toreiros – aqueles que transportam toras recém saídas da floresta para os pátios das madeireiras – estão em plena circulação no norte de Mato Grosso. O movimento diminuiu, mas não parou com a intervenção de São Pedro, indicando que o corte continua. Para vê-los nos arredores das cidades do arco do desmatamento, basta um passeio ao anoitecer. Estão nos postos abastecendo para mais uma noite de retiradas, ou chegando carregados de toras até as serrarias, que também funcionam depois do pôr-do-sol, quando não precisam temer a fiscalização.

Na teoria, se arriscam demais, pois se muitas vezes transportam madeira ilegal, quase sempre andam em péssimas condições de segurança. E se só por infringirem as regras de trânsito eles deixassem de circular, estariam fazendo um imenso bem às florestas. Mas para isso o Estado devia funcionar.

Nos últimos feriados (quando os toreiros saem à luz do dia) aconteceu uma situação patética próxima à cidade de Brasnorte, no noroeste de Mato Grosso. Minutos depois de entrar no trecho asfaltado da estrada, um carro de passeio que não levantaria qualquer suspeita foi parado por uma viatura policial. Exigiram todos os documentos e revistaram as bagagens com minúcia. Tanto rigor chegou a surpreender, mas por pouco tempo. Metros adiante, esse mesmo veículo ultrapassou os velhos toreiros, muitos deles sem faróis, pára-choques, placas ou com carroceria parcialmente destruída, sem falar em deficiências mecânicas. Onde estava a polícia nessa hora?

De acordo com a Polícia Militar, ela não pode mesmo estar em todos os lugares. Ainda mais em Mato Grosso, que tem a maior malha viária estadual do país, com cerca de 28 mil quilômetros de estradas, dos quais apenas quatro mil asfaltados. Para zelar pelo bem-estar da população, a PM dispõe de 6.800 homens, quando para atender suas demandas normais precisaria de mais seis mil, prometidos para chegar através de novos concursos. Os que estão na ativa têm de se dividir, nas bases da capital e do interior, entre as atribuições cotidianas das cidades e a fiscalização em tantas estradas. Assim quis a Secretaria de Segurança Pública, quando em janeiro de 2007 extinguiu sua Polícia Rodoviária Estadual, na mesma leva em que acabou com a Polícia Ambiental.

Velhos e descartáveis

A conta não fecha. É muita estrada para pouca gente. Então a polícia optou por ter uma mínima presença, e apenas nas poucas rodovias asfaltadas. De acordo com a Secretaria de Infra-Estrutura (Sinfra), de todas as estradas estaduais de Mato Grosso, existem apenas sete postos policiais em funcionamento. E nenhum nas principais áreas madeireiras. “O combate ao crime ambiental em Mato Grosso é prejudicado pela significativa ausência de fiscalização da frota de caminhões, em especial no norte do estado”, conta Rodrigo Dutra, chefe da fiscalização do Ibama em Mato Grosso. Segundo ele, muitas vezes os infratores sequer podem ser identificados. Os motoristas literalmente abandonam o veículo e somem no mato, na beira das estradas, quando sabem que alguma operação está em curso, isso quando os veículos não quebram. “Os caminhões são velhos assim porque se a fiscalização pegar, a perda não vai ser tanta”, diz Dutra. Quando a fiscalização efetivamente chega, costuma ter dificuldade para registrar o caminhão pela ausência de placa e até de conduzi-lo até a cidade mais próxima, dada a precariedade do veículo.

Mas se, por sorte, o caminhão estiver ocupado, Dutra explica que o primeiro procedimento é pedir a documentação da madeira. Se não estiver em dia, recebe autuação por crime ambiental. Outras deficiências são encaminhadas à Polícia Militar ou Civil, que ficam responsáveis por notificá-los e passá-los, por sua vez, às representações do Detran nas cidades.

O comandante geral da PM, coronel Campos Filho, informa que operações para retirar veículos sem condições de circulação ocorrem periodicamente. “Nesses últimos 20 dias fizemos operações simultâneas em todo o estado”, avisa. De acordo com dados da PM, só este ano foram apreendidos 1.733 veículos pelo batalhão de Sinop, responsável pelos municípios do centro-norte do estado, incluindo os problemáticos Guarantã do Norte, Peixoto de Azevedo, Juara, Apiacás e Paranaíta. Quem cuida de toda região noroeste, por sua vez, é o batalhão de Juína, que também segundo o comando-geral da PM, apreendeu 353 veículos este ano. Desses, no entanto, não foi possível saber quais eram caminhões toreiros.

Tudo pelo social

O coronel Campos Filho reconhece que os toreiros circulam sem condições de segurança nas estradas, mas garante que nas rodovias asfaltadas e dentro das cidades, a polícia não os deixa entrar. “Esses caminhões circulam no local de extração. Mas para chegar até a madeireira, o material passa para veículos que estão em perfeitas condições de uso”, diz o coronel. Infelizmente, é fácil comprovar o contrário no norte de Mato Grosso, onde sequer asfalto e saneamento chegaram à maioria das cidades campeãs de desmatamento. A carência da população torna os moradores coniventes com o transporte precário e ilegal, e por esses motivos, o problema é minimizado. “Existe uma questão social por trás disso. Nas cidades, sim, cobramos que os caminhões estejam em condições. Mas não adianta só repreender. As famílias nos pediram isso”, declara Campos Filho.

Seja por questões sociais ou limitação de infra-estrutura e de pessoal, não há quem consiga fiscalizar as estradas mato-grossenses mais importantes para retirada ilegal de madeira: as vicinais. “Sem dúvidas nessas rodovias são feitas fiscalizações pontuais quando detectamos alguma necessidade”, afirma Alexandre Mello, secretário-adjunto da Sinfra. Segundo ele, não se trata de uma operação rotineira e o critério é utilizado também nas estradas pavimentadas que não têm posto policial. A PM adota a mesma estratégia. “Damos prioridade para atender mais as cidades do que as áreas rurais. Mas quando somos solicitados pelo Ibama ou pela Sema [Secretaria Estadual de Meio Ambiente], montamos operações especiais”, relata o coronel Elierson Metelo, comandante do batalhão da PM de Sinop.

Poder público atrasado

Uma dessas operações aconteceu entre os dias 5 e 25 de novembro no norte do estado para verificar pontos de queimadas e derrubadas. “Quando cruzamos com esses caminhões, autuamos o flagrante”, diz o capitão Souza, do 11º comando de policiamento de área em Alta Floresta. Na ocasião, além de maquinário, foram apreendidas 38 armas de fogo. Mas para um estado do tamanho de Mato Grosso, não é suficiente.

Segundo o coronel Metelo, a decisão de acabar com a Polícia Rodoviária Estadual ainda não se mostrou a melhor solução, pelo menos não enquanto faltar efetivo policial nos batalhões. “Assim como o ambiental, existia antes um batalhão focado na fiscalização das rodovias estaduais. Sem ele, a atribuição dos comandos regionais aumentou”, conta. “Na época, foi uma atitude abrupta. As atribuições foram descentralizadas, mas não o efetivo, que continuou na capital”, diz Metelo.

De acordo com o capitão Souza, em Alta Floresta já aconteceu uma operação específica para tirar os toreiros de circulação. Mas ação semelhante ainda não ocorreu em outras regiões do estado porque, de acordo com ele, precisa da solicitação de outros órgãos, como Ministério Público, Ibama e Sema.

“Mato Grosso é um estado novo num tempo velho”, resume Metelo. Ele exemplifica que Sinop, a maior cidade do norte do estado, tem apenas 30 anos de emancipação e, como cidades novas, a polícia também é nova. “Só em 2003 foram criados os comandos regionais no interior, como em Juara e Juína”, lembra. Nesses locais, as cidades crescem a uma velocidade muito superior ao controle do poder público. Sem ter quem imponha as leis nesses confins, os toreiros continuam, no descompasso de seus veículos, circulando com naturalidade.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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