Circula desde a semana passada na Internet um estudo de apenas 11 páginas que qualquer prefeito de cidade brasileira com praias deveria ler.
O trabalho conta as descobertas de uma pesquisa feita entre janeiro e fevereiro de 2003 sobre o lixo na praia de Cassino, no Rio Grande do Sul. Os dados mostram que o volume de sujeira gerada pelos banhistas tem tudo a ver com seus níveis de educação e renda. Quanto menor a escolaridade e o salário, maior a propensão da pessoa a emporcalhar a faixa de areia onde estende sua toalha.
Em Cassino, a turma de baixo da pirâmide social produziu mais que o dobro de resíduos do que gente com mais tempo de estudo e mais dinheiro no bolso. “Me parece que este tipo de padrão seria o mesmo para a maioria das praias brasileiras”, diz o oceanógrafo Isaac Santos, que assina o estudo junto com Mônica Wallner-Kersanach, Ana Friedrich e Gilberto Fillmann, todos da Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG). O estudo de Santos e seus colegas baseia-se em 169 entrevistas com freqüentadores de Cassino e no levantamento detalhado, duas vezes por dia, do lixo que eles iam espalhando pela areia. Para os autores, os resultados encontrados comprovam que a diminuição da presença de resíduos na areia não depende apenas do número de garis dedicados à limpeza de uma praia. É também uma questão de educação.
Nesse aspecto, aponta a pesquisa, faz-se muito pouco para resolver o problema da sujeira no litoral. Em geral, campanhas para fortalecer uma cultura de conservação entre os banhistas têm muito mais marketing ambiental do que viés educacional. Limitam-se à distribuição de sacolas de lixo que as pessoas não usam, ou usam mal, e de cartazes com slogans que a maioria da população não entende. “Observa-se com freqüência que isso se torna apenas mais uma fonte de lixo nas praias”, escrevem os autores da pesquisa. Os sacos de lixo dados aos freqüentadores de praias em geral são pequenos, pouco resistentes e impossíveis de lacrar. Quem os utiliza costuma deixá-los largados sobre a areia para serem recolhidos pelos garis.
Os cartazes com slogans em favor da conservação também não são eficazes. Suas mensagens fazem pouco sentido até mesmo para Issac Santos, aluno de doutorado na Florida State University. “O que significa para um cidadão comum ouvir que o lixo na praia polui ou que o plástico demora 400 anos para desaparecer do ambiente?”, pergunta ele. Absolutamente nada. Santos diz que não é difícil encontrar mensagens mais concretas para passar à população. “Por exemplo, por que não dizer que o lixo na praia fere em média 20% de seus freqüentadores, ou que tartarugas morrem engasgadas com plásticos?”. Recados mais diretos, próximos à vida das pessoas ou usando criaturas que elas em geral gostam – como as tartarugas – podem ter impacto mais relevante.
A pesquisa foi feita em duas áreas específicas da praia de Cassino. Uma, Iemanjá, fica bem em frente ao acesso principal da praia e é o local onde se reúnem pessoas de nível sócio-econômico mais baixo. Nela, os autores entrevistaram 96 pessoas, cerca de 40% apenas com o ensino fundamental completo e metade delas ganhando abaixo de 3.200 dólares por ano (algo em torno de 870 reais mensais, na época). A outra área, conhecida como Gelo, tem freqüência diferente. Entre as 73 pessoas entrevistadas, 80,8% ganhavam acima dessa faixa e 46,6% estavam na universidade.
Hábitos semelhantes
Antes que o pessoal mais abastado empine o nariz e infle o seu ar de superioridade, é bom deixar claro que fora o volume de lixo gerado e o nível de educação e renda, são poucas as diferenças encontradas entre os freqüentadores das duas áreas pesquisadas em Cassino. Na área 1, onde se concentram os mais pobres, 85,4% dos entrevistados disseram que comem e bebem na praia. Na área 2, o percentual foi de 65, 8%. Nela, também havia mais não-fumantes, em torno de 80%, do que na zona freqüentada por pessoas de nível educacional mais baixo, onde os não-fumantes eram cerca de 67%. No mais, o comportamento dos banhistas, sua percepção sobre a presença de resíduos na areia e o perfil do lixo gerado nos dois grupos é muito semelhante.
Em ambos, a maioria, próximo de 25% dos entrevistados, acha que o lixo é o maior problema de Cassino. Cerca de 40% dos banhistas nas duas áreas também acha que ele é resultado da falta de educação e mais de 90% acreditam que sua principal fonte são os próprios freqüentadores, muito embora poucos foram os entrevistados que admitiram ser parte do problema. Na área da praia onde ficam as pessoas com menos tempo de escola, 74% responderam que nunca deixaram lixo na areia. No Gelo, a outra área pesquisada, esse índice ficou em 75%. “Trata-se de um paradoxo”, diz Santos. “Mesmo os poucos que admitem ter gerado resíduos, recusam-se a aceitar sua culpa no problema”.
Eles dizem que enterram o lixo, mas que ele se espalha por culpa das crianças, da maré e do vento. O perfil dos resíduos que cada grupo gerou durante o período da pesquisa também foi muito semelhante. Guimbas de cigarro formavam o principal tipo de lixo achado na areia, cerca de 40% do volume nas duas áreas somadas, seguido de pedaços de plástico (23%), restos de comida (20%), papel (7,8%) e madeira de palitos de picolé e fósforos (7,1%). Toda essa numeralha do estudo, segundo Santos, mostra que para controlar o volume de lixo na areia as autoridades encarregadas da manutenção de praias precisam adotar modelos de gestão que levem em consideração não só a limpeza, mas a mobilização dos banhistas.
Se não conseguirem envolvê-los na solução dos problemas, os burocratas que mandam garis todos os dias para recolher resíduos na areia estarão apenas enxugando gelo. A freqüência nas praias do Sul do Brasil, diz Santos, é crescente. E mais gente na areia, como comprova o estudo feito em Cassino, faz crescer o volume de resíduos deixados sobre ela. A equação parece óbvia, mas como comprova o trabalho desses quatro pesquisadores, raramente ela é levada em consideração pelas prefeituras.
A decisão de fazer uma pesquisa desse tipo em Cassino surgiu de uma mistura de curiosidade científica com idealismo. “Tínhamos a ansiedade de aplicar nosso conhecimento técnico para a resolução de problemas ambientais”, diz. Serviu como uma espécie de desculpa para juntar as duas coisas e não podia ter dado mais certo. Além de ter gerado dados fundamentais para entender, e combater, a geração de lixo nas praias, o trabalho tem um aspecto pioneiro. Os autores reviram cuidadosamente a literatura já produzida sobre resíduos em praias. Os estudos anteriores quantificam o volume de lixo, mas nenhuma tentou verificar as relações entre o padrão de distribuição do lixo na areia com o padrão de ocupação e perfil social dos banhistas. A pesquisa de Santos e seus colegas tem tudo para ter sido a primeira. Instituições de pesquisa e ensino podem ter acesso ao texto de graça. Basta entrar em contato com Santos pelo seu e-mail. No site onde está publicado, custa 30 dólares.
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