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Tally ho!

Se a história acontecesse hoje, Chapeuzinho Vermelho acabaria na boca do Lobo Mau. A caça, que ajudou a preservar muita floresta, virou coisa de fora-da-lei.

17 de setembro de 2004 · 20 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Tally ho é uma expressão britânica utilizada durante a caça à raposa que, subitamente, ingressou no noticiário das principais agências internacionais, em função de uma invasão do parlamento britânico em protesto pela aprovação na Câmara dos Comuns da proibição da tradicional prática. O noticiário traz à lume uma das maiores polêmicas sobre proteção ao meio ambiente. Refiro-me à caça. A caça, como se sabe, foi uma das primeiras formas que os seres humanos se utilizaram para a alimentação e, com o passar dos séculos, se transformou em um privilégio para uns poucos abastados, sendo fonte de muitos conflitos entre a nobreza e o campesinato na Europa medieval e do antigo regime. Uma das bandeiras da Revolução Francesa foi a extensão do direito de caça ao terceiro estado, em especial à burguesia revolucionária. É digno de registro, também, o fato de que os grandes espaços preservados na Europa tiveram por origem, direta e imediata, as regiões senhoriais e de nobres destinadas à caça, por exemplo, Rambouillet, Marly, Senlis, Compiègne e outras na França.

Os homens, ao longo de sua História, necessitaram da caça como um elemento vital para a sobrevivência, como fonte geradora de proteínas. Em termos biológicos, o ser humano é onívoro e, portanto, o animal integra a sua alimentação.

Interesses de natureza econômica e mesmo o “puro lazer”, aliados à maior letalidade e eficiência das armas, levaram a caça a atingir níveis extremamente elevados, com impacto direto nas populações animais, fazendo com que ela passasse a ser amplamente combatida até mesmo com o estabelecimento de uma convenção internacional contra o tráfico de espécies ameaçadas de extinção (Decreto nº 3.607/00 – Dispõe sobre a implementação da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção – CITES) da qual o Brasil é signatário. Vários países adotaram a restrição, como é o caso do Brasil que não admite a caça profissional (Lei nº 5.197/67 //…Art. 2º – É proibido o exercício da caça profissional..).

Estes fatos fizeram com que, em muitos países, as espécies protegidas por normas legais, passassem a desfrutar de um inequívoco aumento populacional, gerando problemas relacionados com os conflitos de uso do solo entre os animais protegidos e as populações rurais.

O prosaico Lobo Mau que aterroriza as crianças nas histórias de chapeuzinho vermelho, três porquinhos e outras, hoje é um animal protegido na Europa e a sua população vem crescendo de forma bastante importante, gerando problemas para agricultores “para o agrado dos naturalistas e para o horror dos agricultores, nos últimos 6 anos (há muito mais tempo para alguns ecologistas), os lobos têm regressado lentamente à França vindos dos Alpes Italianos. Várias alcatéias estão agora estabelecidas no reduto selvagem do Parque do Mercantour, a Norte de Nice e do Mônaco. No entanto, é a primeira vez neste século que os lobos foram localizados tão a Norte: perto de auto-estradas a apenas 20 milhas dos subúrbios de Grenoble”.

Na Austrália, noticia-se um excesso de cangurus que, em tese, trariam grandes dificuldades para a agricultura. “A Austrália vai sacrificar cerca de 15 mil cangurus em uma base militar no sul do país para tentar controlar o ritmo de crescimento da população dos animais na região. O governo alega que a área da base de Puckapunkal não é suficiente para abrigar a população de marsupiais, que “explodiu” recentemente para um número estimado entre 80 mil e 100 mil. Os animais vêm fugindo para as fazendas e vilas vizinhas em busca de comida e água. Segundo o Departamento de Defesa australiano, a população está fora de controle e muitos animais estão morrendo de fome. O Departamento obteve licença para matar 15 mil exemplares do animal-símbolo do país”.

Na África, o aumento da população de elefantes está se tornando uma questão complexa a ser administrada pelos governos, pois envolve interesses da indústria turística, de populações locais, observância de tratados internacionais e muitos outros. “Documentos do governo do Zimbábue revelaram que um santuário da fauna africana foi fechado pelo ministro da informação do país, Jonathan Moyo, e transformado em campo de caça. Reconhecido no passado como excelente local de eco-turismo, o Sikumi Tree Lodge pertence legalmente ao ecologista Thys de Vries, de 44 anos. Ele, sua mulher e três filhos fugiram do parque depois que homens armados invadiram a propriedade, há cerca de um ano, de acordo com o jornal The Daily Telegraph. Moyo nega ter assumido a propriedade, uma das mais valiosas em oferta, depois que o governo iniciou uma apropriação em massa que expulsou quatro mil fazendeiros brancos de suas fazendas. O presidente do Zimbábue, Robert Mugabe decidiu no começo deste ano que ninguém teria direito a possuir mais de uma fazenda, lei ignorada por muitos dos membros de sua família, inclusive sua mulher, Grace. No auge do boom de turismo do país, decadente nos últimos anos, o parque Sikumi arrecadava cerca de 3 mil libras esterlinas por mês. Aparentemente, os novos donos estariam compensando as perdas financeiras permitindo a entrada de caçadores”.

Concomitantemente, há todo um processo político para a defesa dos “direitos dos animais” que, hodiernamente, já contam com uma “Declaração de Direitos” que foi proclamada em assembléia da Unesco, em Bruxelas, no dia 27 de janeiro de 1978. A Declaração não se volta especificamente para a caça, mas diz respeito à proibição de crueldade contra os animais. Ressalte-se que, como declaração, não é obrigatória para os estados. No Brasil, os animais silvestres pertencem ao estado, não havendo um direito de caça esportiva indiscriminado, pois este deve ser regulamentado pelo governo federal, no caso representado pelo IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. No Estado do Rio Grande do Sul, tradicionalmente é aberta uma temporada de caça, sendo estabelecidos critérios para o exercício da atividade. Pessoalmente considero a caça uma barbaridade e não estaria disposto a participar de uma caçada. No entanto, entendo que a atividade necessita ser regulamentada, pois assim determina a legislação brasileira, inclusive a nossa lei de Crimes ambientais (art. 29).

Enfim, estas são apenas algumas questões suscitadas pela extravagante invasão do Parlamento Britânico. Tally Ho!!!

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