Reportagens

Esperança reciclada

Catadores mineiros ganham primeira usina de reciclagem de plástico a ser gerida por cooperativa. O mercado está em expansão, mas há muito o que avançar.

Lorenzo Aldé ·
9 de setembro de 2005 · 19 anos atrás

Detergente, amaciante, álcool, sabonete líquido, óleo lubrificante, iogurte, shampoo, soro fisiológico, desodorante, suco e leite em garrafa plástica… Depois de usados, viram o quê? Lixo? Não, se caírem nas mãos dos catadores organizados da Grande Belo Horizonte. Trituradas, lavadas, aquecidas, derretidas e condensadas, todas essas embalagens se transformam em pellets, pequenos granulados plásticos. E assim voltam à indústria, como matéria-prima para a produção de mangueiras, tubos, lonas, peças de automóveis e revestimentos diversos (clique na foto para ver a seqüência).

O saldo da transformação, além do alívio aos lixões e aterros, é dinheiro. Um quilo de plástico prensado, como o que os catadores mineiros vendiam a atravessadores, custa entre 40 e 60 centavos. Um quilo de pellet, agora que eles têm uma usina própria para processar o material, rende entre 1,60 e 2,20 reais.

Por isso, no dia 5 de setembro, em Belo Horizonte, na inauguração da primeira fábrica de reciclagem a ser administrada por catadores na América Latina, o tom dos discursos era muito mais social do que ambiental. Jacques de Oliveira Pena, presidente da Fundação Banco do Brasil que bancou metade dos 4 milhões de reais investidos no projeto, lembrou que os catadores são um dos públicos-alvo do programa Fome Zero e que as 3 mil toneladas de plástico processadas por ano vão aumentar a renda dos 550 integrantes das cooperativas que vão gerir o negócio.

Discretos, distantes das autoridades do palanque — dos ministros das Cidades e Desenvolvimento Social ao prefeito de Belo Horizonte, deputados e vereadores — os catadores circulavam ainda meio sem jeito pelo espaço que será seu. É gente que veio do mais baixo dos andares sociais, aquele que sobrevive das sobras da cidade, acostumado a ser tratado como seu objeto de trabalho, o lixo. Gente que, nos últimos anos, virou protagonista de um movimento de inclusão social que quer pegar carona num mercado em expansão. A fórmula das cooperativas tem dado certo, mobilizando parcerias públicas, privadas e de ongs, e permitindo a muitos catadores deixar para trás a vida indigente para garantir ao menos um salário mínimo no fim do mês.

As cooperativas de oito municípios que integram a nova usina de reciclagem — além da capital, Betim, Contagem, Igarapé, Itaúna, Paraopeba, Nova Lima e Pará de Minas — têm um líder natural. É a Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável de Belo Horizonte, ASMARE. Fundada há 15 anos, é uma das mais antigas do Brasil, tem hoje 380 associados, dois galpões de triagem das 450 toneladas de material que recolhe por mês, e até um Centro Cultural, o Reciclo, que vende objetos artesanais, promove oficinas e à noite funciona como bar. A decoração faz jus à proposta, da porta de pára-brisas de carro ao teto de tubos de pasta de dente.

Com o Festival Lixo e Cidadania, a ASMARE transformou Belo Horizonte em capital brasileira da reciclagem. O evento chega em 2005 à sua quarta edição, e a grande presença da mídia e do público, sem falar na usina de reciclagem que conquistaram, são provas do poder de mobilização dos catadores. Num galpão da cooperativa decorado de alto a baixo com luzes e objetos multicoloridos, ocorre a mistura de festa – com shows de artistas “reciclados” como Naná Vasconcellos e Hermeto Paschoal -, feira de artesanato (com coisas como crochê de plástico, esculturas de engrenagens de bicicleta e mil-e-uma utilidades para PET) e debates.  

Na abertura do Festival, os cantos, palavras de ordem, faixas, bonés e bandeiras agitadas lembravam o crescimento de um certo movimento social que no início dos anos 90 ganhou a simpatia da opinião pública. Mas em vez do vermelho da luta pela terra, entre os catadores predomina o verde, e versos como “Nessa marcha sem parar / Caminhar é resistir / E se unir é reciclar”. Com presença confirmada até a véspera, o presidente Lula deu bolo, talvez convencido pela assessoria de que não é boa hora de aparecer em evento sobre lixo e reciclagem. Perdeu uma grande chance de se aproximar das massas. Os catadores de todo o Brasil acolheriam o presidente como um dos seus. “Ele veio de baixo, não tem nada a ver com essa corrupção toda. Foi envolvido”, acredita Ruth, ex-prostituta de Goiânia (GO), pioneira do movimento em seu estado e hoje integrante do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCMR).

“Hoje é um dia histórico porque conquistamos o domínio da cadeia produtiva, que sempre esteve na mão de cartéis”, discursou Cido Gonçalves, da ASMARE, na abertura do Festival. A inauguração da usina, entretanto, não subiu à cabeça de Luiz Henrique da Silva, também catador da Associação, que falou logo depois dele. “Hoje foi tudo maravilhoso, mas a situação no Brasil ainda é degradante. 64% dos municípios estão com lixo a céu aberto. Os orçamentos municipais não priorizam o lixo e não há uma ação concreta que beneficie nossa categoria”, disse Luiz Henrique para um público de pelo menos 700 pessoas.

A convidada de honra na abertura do evento foi Danielle Mitterand (foto), ex-primeira dama francesa e presidente da fundação France Libertés. Levantando a bandeira da proteção aos recursos hídricos, Danielle definiu a lógica da reciclagem como uma nova mentalidade, “em que nada se perde e nada se destrói”, indispensável para “modificar as estruturas irresponsáveis de poder, que devastam a natureza”. “Queremos ser consumidores ou cidadãos?”, perguntou à platéia.

Se por um lado a causa da “preservação da vida, do planeta e de todos nós” embalava o clima do Festival, por outro o objetivo dos catadores não é lutar contra o sistema, mas arranjar um lugarzinho nele. Sua cidadania hoje depende exatamente do consumo dos outros, e sua mentalidade está voltada para a geração de trabalho e renda. Preservação ambiental, neste caso, é efeito colateral e passa por equações econômicas.

Que o diga Carlos Henrique Seibt, coordenador da empresa gaúcha Seibt, que forneceu todo o equipamento da nova usina de reciclagem, por cerca de 500 mil reais. Sua empresa instala em média 12 unidades de reciclagem de plástico por ano, e vem sendo cada vez mais requisitada, inclusive por outros países da América do Sul. “As encomendas para reciclagem pós-consumo cresceram 35% nos últimos três anos, e já representam 50% do faturamento da empresa”, informa.

Mercado novo, novas oportunidades. Na inauguração da fábrica já tinha empresa anunciando produtos para facilitar a vida de quem vive da reciclagem. Como o Coletortec (foto), um carrinho motorizado que não livra o catador de andar a pé, mas ameniza seu esforço de carregar o material. Custa 7 mil reais, mas pelo menos uma unidade já foi doada à fábrica pela Prefeitura.

Os atrativos financeiros aliados à inclusão social podem ajudar a reverter o quadro crítico do destino dos resíduos sólidos no Brasil. As latinhas de alumínio já sumiram dos lixões e da natureza, e as garrafas PET seguem o mesmo caminho. Mas os demais resíduos plásticos ainda são um problema. Em 2004, foram produzidas 2 milhões de toneladas de plástico pós-consumo, e recicladas apenas 359 mil toneladas (16,4%). As regiões Sul e Sudeste concentram quase que a totalidade da reciclagem de plástico no país (82,7%). Na região Norte, a reciclagem é zero.

* Lorenzo Aldé viajou a Belo Horizonte a convite da Fundação Banco do Brasil.

  • Lorenzo Aldé

    Jornalista, escritor, editor e educador, atua especialmente no terceiro setor, nas áreas de educação, comunicação, arte e cultura.

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