Análises

Fantasia macabra

As bordas prateadas da Lagoa parecem anunciar o Carnaval carioca. Espetáculo anual, as toneladas de peixes mortos chegam ao mar e enchem o céu de gaivotas.

Carlos Secchin ·
27 de janeiro de 2005 · 20 anos atrás

No sábado passado, os helicópteros não voaram. É estranho, porque me acostumei com o barulho dos rotores e dos hélices dessa ruidosa e maravilhosa engenhoca.

Aqui na praia, muitas vidas, anualmente, são salvas. Os banhistas, vítimas das valas, são retirados dentro de puçás, agarrados às redes, de fato mais mortos de vergonha do que afogados.

Mas, neste sábado, havia silêncio no ar. Havia, também, pássaros grandes. As maiores gaivotas que são vistas por qualquer um, de qualquer ponto, no céu do Rio de Janeiro.

Fregatas magnificens. O seu sobrenome nos diz o que ela é. Sua forma se assemelha às longínquas aves que conhecemos petrificadas como fósseis. São exímias pescadoras, que utilizam o bico em forma de gancho para capturar em vôo, na superfície, suas presas.

O macho adulto da espécie chega a medir dois metros de envergadura. Elegante e ágil, é capaz de fazer manobras desafiantes com múltiplos e independentes movimentos das asas. A que eu mais gosto de ver é quando balança a cauda em forma de tesoura, sacudindo o corpo inteiro, feito um cachorro molhado. Acho até que é irreverência, porque nunca vi outras fazendo.

Entre as aves marinhas que conheço é a que tem mais nomes: fragata, tesourão, pirata, catraia e joão grande. Geralmente, voam em correntes ascendentes em largos e concêntricos círculos até que o alimento localizado faça com que elas desçam.

No mês de setembro, o macho infla um saco vermelho cobrindo parte do peito e pescoço. Eles ficam sobre as ilhas mais altas do Rio, atraindo as fêmeas. São aves arredias à aproximação humana e procuram os paredões mais escarpados para construir os ninhos.

Muitas toneladas de precioso alimento: peixes agonizantes e mortos passaram, no sábado passado, do canal da lagoa para o mar. Guardando as proporções, assim como os ursos ficam à espera do cobiçado salmão, que depauperado pelo esforço reprodutivo se deixa levar pelas águas geladas das corredeiras, vi, próximo à areia da praia de Ipanema, as fragatas mergulhando o bico e capturando toda sorte de peixe sem valor comercial.

Ainda bem, porque todo ano é sempre o mesmo espetáculo de desperdício de alimento no país campeão em criação de slogans contra a fome. Vexame ou não, o fato é que a nossa lagoa borda sua borda com escamas de prata, como se anunciasse o carnaval da cidade com a sua fantasia macabra.

No calendário dos fenômenos naturais da cidade inclui-se, definitivamente, a morte. O nosso céu se cobre com a espécie de ave grande, negra e pescadora de movimentos admiráveis que leva pelo ar e para longe parte da culpa dos que se culpam por aquilo que não conseguem realizar — um simples projeto de oxigenação de águas quentes e estagnadas. E os helicópteros, nesses dias, em respeito às aves, não decolam para que elas, por direito, transportem, junto com a Comlurb, a nossa incúria para outro lugar.

* Carlos Secchin é autor dos livros Mar do Rio – Fronteira Azul da Cidade e Narcosis – Histórias de Mergulhador.

  • Carlos Secchin

    Carlos Secchin é engenheiro e fotógrafo, Carioca, vive no Cerrado onde se dedica a conservar uma pequena porção deste rico bi...

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