Reportagens

Flerte fatal

O nascimento de um bebê hermafrodita fez evangélicos levarem índios primitivos para São Paulo. O impacto cultural da experiência tem tudo para acabar em tragédia.

Carolina Mourão · Luiz Ferreira ·
5 de agosto de 2005 · 19 anos atrás

A tribo dos suruwa-há, que tem terras demarcadas próximas ao município de Tapauá, no sul do Amazonas, há muito é alvo de uma disputa religiosa. De um lado está o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que defende uma assimilação muito lenta e mais gradual ainda do mundo dos brancos pela tribo desde que o primeiro contato com ela foi feito, pela Pastoral Indígena da Prelazia de Labre, em 1980.

Tudo ia muito bem até 1985, quando apareceram no pedaço missionários da Jovens com uma Missão (Jocum), uma organização financiada por evangélicos fundamentalistas americanos que tem uma prática completamente oposta à do Cimi em relação aos indígenas. Fazem trabalho e alfabetização com a Bíblia e, segundo Paulo Adário, coordenador da Campanha Amazônia do Greenpeace, não hesitam em condicionar a prestação de serviços médicos à adesão a palavra de Deus.

Cimi e Jocum chegaram a se enfrentar na Justiça do Amazonas em 2000 por causa dos suruwa-hás. Os católicos denunciaram a ação do Jocum ao Ministério Público estadual junto à tribo. O MP ordenou que todos os missionários, de qualquer religião, abandonassem a área. “Eles não obedeceram à ordem judicial. Então decidimos ficar também”, contra Pedro de Silva e Souza, do Cimi. A coisa acalmou um pouco, mas recentemente, a briga voltou a esquentar por causa de uma criança suruwa-há que nasceu no início do ano.

Segundo a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), tudo começou quando uma equipe médica da Força Aérea Brasileira (FAB) esteve na região amazônica para auxiliar na campanha de vacinação indígena em abril. Dois médicos da FAB e duas enfermeiras da Funasa diagnosticaram a necessidade de exames mais específicos em uma criança de quatro meses na aldeia dos suruwa-hás. Suspeitavam de um caso de hermafroditismo.

Autorizada pelo Distrito Sanitário Especial Indígena Médio Purus, a Funasa então retirou a criança da aldeia na primeira semana de junho para a realização dos exames em Porto Velho (RO), onde há equipamentos mais adequados. De lá, ela foi encaminhada para São Paulo no dia 19 de julho. A mãe, o pai, o avô, um irmão e mais dois membros da tribo foram junto.

Responsável direta pelo tratamento médico público de índios desde agosto de 1999, quando um decreto tirou as atribuições de saúde indígena da Fundação Nacional do Índio (Funai), a Funasa permitiu que o acompanhamento dos Suruwa-há na cidade ficasse a cargo de membros da Jocum. A Jocum ganhou da autoridade sanitária o direito de cuidar dos índios na cidade.

Mesmo tendo seu território invadido e sendo pressionados a aceitar a catequização, os 144 membros que atualmente formam a tribo dos suruwa-há conseguiram preservar as suas características culturais e seus comportamentos nativos. E entre todas as tradições há uma que torna essa história mais perigosa. Os suruwa-hás, como outras tribos, têm um expediente radical para reagir a situações de pressão, tensão ou humilhação: o suicídio coletivo.

Para o indianista Sidney Possuelo, que há 30 anos comanda pela Funai expedições de primeiro contato com os últimos índios isolados da Amazônia, o impacto que o tratamento médico está causando entre os suruwa-hás é grande. “Esse tipo de índio fica mais deprimido e dependente da parafernália que jamais poderia manter. Não consegue digerir isso e fica de ‘espinha quebrada’, sem saída”. Espinha quebrada é um termo utilizado pelo antropólogo Darcy Ribeiro e significa um tipo de derrota moral incurável que leva à depressão e ao possível suicídio, uma tendência forte em se tratando dessa tribo.

A sucessão de equívocos continua. Para a Funasa, a intervenção na tribo não é um fato preocupante. Desde 2001 alguns indígenas suruwa-hás vêm sendo retirados da aldeia para tratamentos médicos, principalmente contra picadas de cobras. Mas Possuelo alerta: “Mesmo que partisse da tribo o pedido de ajuda de fora, seria preciso uma estrutura monumental para que a visita a São Paulo não gerasse choque nos grupos que saem”.

Se para os índios que estão em São Paulo o impacto cultural com a cidade é o maior desafio, para os que ficaram na tribo o problema não é diferente. “Uma intervenção considerada grave, o suicídio indígena é como um canal natural para eles. Dessa maneira, a pressão contra esse traço cultural causar ainda mais problemas”, explica Possuelo.

Na cidade, os índios estão isolados e não há garantia sobre seu estado de saúde. Os próprios membros da Jocum, que se propuseram a apenas acompanhá-los na capital paulista, já se fazem donos dos suruwua-há. Os índios vivem como animais raros aprisionados, sendo proibida qualquer verificação ou explicação sobre suas condições. A Jocum guarda a sete chaves o paradeiro dos índios que foram para São Paulo e sequer a Funasa do estado conseguiu localizá-los.

Possuelo prevê um final nada feliz para essa saga: “Esses índios são semi-isolados. Os parâmetros desses que foram recém contactados são muito subjetivos. O dano desse flerte com o mundo civilizado pode ser fatal para eles”. Literalmente.

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