Reportagens

O discurso e a prática

Um ano após a Operação Curupira, suspeitos ainda estão a solta dentro e fora do Ibama e o controle florestal criado por Mato Grosso apresenta falhas no campo.

Andreia Fanzeres ·
1 de junho de 2006 · 18 anos atrás

Mato Grosso é um estado marcado pelo crime ambiental. Ao longo da última década, tem amargado as primeiras posições entre as unidades da federação que mais queimam e desmatam. As explicações para boa parte das infrações contra o meio ambiente foram reveladas pela Operação Curupira, que em junho do ano passado mostrou como despachantes, servidores do Ibama, da extinta Fundação Estadual de Meio Ambiente (Fema) e empresários estavam envolvidos num mega esquema de comércio ilegal de madeira. Desde que a poeira baixou, os governos federal e estadual decidiram entrar em acordo para evitar mais escândalos ambientais daquele porte. Prometeram mover mundos e fundos para desfazer a imagem negativa de Mato Grosso. Um ano depois, as regras do jogo mudaram, mas os resultados ainda não apareceram.

O estopim para o início das mudanças foi a transferência das atribuições de gestão florestal do Ibama para o governo de Mato Grosso. A despeito do histórico de desleixos ambientais verificados no estado, em setembro do ano passado, a ministra Marina Silva confiou essa tarefa a Blairo Maggi. À época, o governo estadual estava reunindo instrumentos considerados exemplares para assumir tais demandas, como um programa de avaliação por satélite de todas as propriedades, execução do licenciamento rural único, e um sistema para comercialização de madeira, o Sisflora. Em contrapartida, o Ibama ficaria mais ágil, concentrado basicamente na fiscalização.

Para começar, a estratégia do governo de Mato Grosso foi a de tentar regularizar a todo custo a situação de quem atuava no setor florestal de maneira ilegal, concedendo aos infratores uma série de benefícios – muitos dos quais questionados pelo Ministério Público, como no caso do programa que dava 70% de desconto na multa para quem declarasse a existência de madeira clandestina no pátio. Quando não procura trazer explicitamente o criminoso para a legalidade, o estado tem permitido facilidades consideradas, no mínimo, perigosas.

É o caso da assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para obter autorização para queima controlada, mesmo que a propriedade ainda não tenha sido licenciada, conforme resolução estadual do mês de abril. Ou então a lei que permite a antecipação do comércio de 30% da madeira de um plano de manejo sem que tenha havido vistoria prévia em campo, que vigora desde o início do ano. “Queremos agilizar e essa medida não dá margem para crime nenhum”, crê Félix Resende, supervisor de transporte de produtos florestais da Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema).

Eletronicamente bom

Para controlar a atividade florestal no estado, o governo de Mato Grosso se baseia no Sisflora, um sistema totalmente eletrônico que acompanha, autoriza e verifica em tempo real o corte de madeira, o volume do material, a origem, o transporte e o destino. O software é semelhante ao sistema usado pelo Ibama, o Sismad, que por depender da mediação de servidores junto ao setor madeireiro, fica vulnerável a boa parte das fraudes denunciadas na Operação Curupira.

Basicamente, o Sisflora funciona assim: depois de obter permissão para exploração numa determinada área licenciada, o madeireiro ganha créditos registrados no sistema. Mensalmente, o programa mostra quanto ele pode cortar, respeitando a quantidade e as espécies de árvores definidas no plano de manejo. A cada 30 dias, ele faz pedidos on-line para autorização de corte. Depois de definir um comprador para as toras, o madeireiro faz uma nova solicitação para transportá-las – não sem antes assinar, aos olhos da Sema, uma Declaração de Venda do Produto Florestal (DVPF).

Para levar a madeira do plano de manejo para a serraria, o caminhão ganha a guia florestal 1, documento a ser impresso pelo próprio madeireiro em qualquer máquina que não seja matricial, com um código de barras. Ao chegar à madeireira previamente regularizada, o dono da empresa registra no sistema quanto de matéria-prima tem no pátio e solicita à Sema o início das atividades, como a serragem. “Qualquer coisa que o madeireiro fizer tem que ser comunicada e autorizada pela Sema porque agora até a gestão dos resíduos sólidos é nossa responsabilidade”, explica Resende. Em seguida, a madeireira precisa pedir a guia florestal 3 para o transporte da carga até o destino final do material, além de explicar o caminho a ser percorrido pelo caminhão. A guia florestal 2 serve para transporte de outros produtos diferentes da madeira.

Resende considera o sistema próximo da perfeição, embora concorde que não é possível acabar de vez com as falsificações. E não acredita que, na prática, o controle eletrônico seja frágil. “Nossos postos de fiscalização nas estradas estão equipados com instrumentos que lêem o código de barras. E se o caminhão cruzar a divisa do estado, basta que os outros postos tenham acesso à internet para checarem no nosso sistema se a carga está correta”, diz o supervisor.

Falhas

Embora o sistema tenha méritos por conseguir realizar um bom cruzamento de dados on-line, em campo os problemas já estão aparecendo. Resende admite que o Sisflora, em vigor há apenas seis meses, ainda passa por adaptações. Não à toa, durante a entrevista que concedeu a O Eco em sua sala na Sema, em Cuiabá, a cada dois minutos o supervisor precisava atender telefonemas e pessoas com dúvidas sobre como operar o Sisflora, entre empresários e servidores da própria secretaria responsáveis pelas unidades regionais da entidade.

“Não nos orientaram em relação à retirada da guia florestal. A gente preenchia na internet o que achava necessário, e sempre dava erro”, conta Wilson Amâncio, funcionário de uma madeireira no município de Juruena. “A Sema disse que depois da Curupira tudo ia ser legalizado, mas até agora eles não liberaram nossos pedidos para plano de manejo. Nenhum aqui no município conseguiu”, diz Amâncio, que está com o pátio cheio de madeira. Ele critica também o curto prazo de validade das guias florestais, depois que são emitidas. Para o transporte de madeira da serraria para o destino final, o documento vale por cinco dias. “É muito pouco, essas estradas são ruins”. Resende, da Sema, explica que o prazo para a saída do plano de manejo para a serraria é maior, justamente em função da condição das estradas na época da chuva. “Damos mais ou menos 10 dias, mas isso varia”, diz. E exatamente por poder variar tanto, o sistema fica passível de mais questionamentos.

“Eles estão em constante mudança de regras”, relata Leslie Tavares, chefe da fiscalização da superintendência do Ibama, em Cuiabá. Segundo ele, já foram identificados casos em que pessoas conseguem imprimir os documentos do Sisflora sem o que todos os campos das guias estejam completos. Mesmo assim, procuram a unidade regional da Sema, preenchem à mão e recebem autorizações na hora.

Por isso, o Ibama começou um trabalho de análise minuciosa das falhas do Sisflora e pretende comunicá-las à Sema, com a intenção de evitar esses mesmos problemas quando implantar o Documento de Origem Florestal (DOF), que vai substituir as Autorizações para Transporte de Produtos Florestais (ATPFs). Ambos os softwares foram construídos sobre a mesma base técnica.

Mesmo com as falhas sendo identificadas, ninguém duvida da maior capacidade estrutural que o estado de Mato Grosso tem para cuidar do controle florestal. Ao que tudo indica o problema é apenas político, pois o órgão estadual fica mais suscetível a sofrer pressões. Nas palavras do presidente do sindicato das indústrias madeireiras da região de Juína, de arriscada essa passa a ser uma situação real. “Estamos adorando que a Sema tenha assumido a gestão florestal, porque temos como fazer pressão para mudar as coisas”, opina João Alves da Luz. “Como o Ibama não era, para nós, um órgão político, não dava para influenciar, a não ser que subornássemos, como acontecia antes e depois da Curupira”, revela.

Mudanças lentas

Verdade ou mentira, fato é que apesar dos escândalos revelados pela Operação Curupira dentro do próprio Ibama, até agora nenhum dos 38 servidores acusados de envolvimento nos crimes foi afastado definitivamente do órgão. Eles continuam trabalhando, ainda que não mais em funções estratégicas, porque os processos administrativos disciplinares não foram concluídos. Oficialmente abertos em julho de 2005, por equívocos de nomeação da comissão que apura os processos, apenas em janeiro deste ano os serviços começaram de maneira efetiva. “É um trabalho monstruoso para apenas três pessoas. Nunca vi tanta dificuldade para trabalhar”, conta Antonio Mendes Reis, um dos advogados da comissão.

O presidente da comissão, procurador federal Edvaldo de Souza, não vê a hora de finalizar os processos. Em boa parte, o que motivou a demora foram as dificuldades de interpretação dos 29 volumes do relatório final da Operação Curupira, elaborados pela equipe do ex-interventor Elielson Ayres. “Além da falta de pessoal, esses processos são muito trabalhosos porque, com a pressa de entregar o relatório da operação, não foram abertas sindicâncias para separar, entre os suspeitos, quem realmente estava mais envolvido com os crimes”, conta Edvaldo. O procurador conta também que no relatório (no qual se baseia para apurar os processos administrativos) faltam documentos e detalhes importantes, o que obriga a pequena comissão a investigações por vezes desnecessárias.

Por isso, Edvaldo insistiu tanto para que Elielson fosse a Cuiabá prestar os depoimentos previstos para a conclusão dos processos, na presença dos servidores acusados. Elielson se recusava a dar seus esclarecimentos na cidade alegando falta de segurança. Mas, na última semana, mudou de idéia. “Tive uma conversa amistosa com o juiz federal Julier Sebastião da Silva e decidi vir”, diz. “Foi muito bom que ele tenha vindo. Muitos pontos que não entendíamos no relatório foram esclarecidos”, reconhece, aliviado, o procurador Edvaldo. Segundo ele, com essa ajuda de Elielson, agora é provável que os processos sejam concluídos até agosto, jamais em junho, como queria o presidente do Ibama. “Tem servidor achando que tudo vai acabar em pizza, mas eu garanto que isso não acontecerá”, diz.

Na esfera penal, a Justiça já começou a condenar as cerca de 230 pessoas processadas criminalmente em razão da Operação Curupira. Segundo o juiz Julier, os processos foram divididos em grupos, o que dinamizou as investigações. “A maioria deles está em fase final. A nossa intenção é que, até o fim do ano, a gente consiga julgar a maioria dos casos”. Desde dezembro de 2005, cinco pessoas já foram condenadas. Mas, até agora, nenhum servidor do Ibama julgado.

Organizar para fiscalizar

Fora as pendências processuais, depois da Curupira o Ibama de Mato Grosso sofreu mudanças importantes. Desativou escritórios regionais que não funcionavam direito e investiu em outros. Mesmo assim, do interior continuam vindo as maiores queixas por melhorias nas condições de trabalho e organização do órgão. “Carecemos de infra-estrutura, recursos e treinamento para os analistas novos. Dizem que nós somos importantes, mas ainda falta tudo aqui na ponta”, diz José Raimundo Martins Junior, gerente do Ibama em Juína.

No que tange à fiscalização, atualmente a principal função do Ibama em Mato Grosso, desde outubro do ano passado o órgão passou a trabalhar de forma coordenada com suas unidades interiorizadas. “Quando eu cheguei, as bases mato-grossenses do Plano de Prevenção e Combate ao Desmatamento na Amazônia estavam fechadas, cada uma com problemas emblemáticos e particulares”, explica Leslie Tavares, chefe do setor. Ele conta que, naquela época, havia 1.200 processos parados sobre sua mesa, além de uma falta de organização generalizada, o que impedia o órgão de se preparar efetivamente para os trabalhos em campo.

Ao concluir o que chamou de trabalho silencioso da administração de fiscalização, Tavares iniciou vistorias nos principais pólos madeireiros do estado para colher informações, preparar operações e passar para a Sema um diagnóstico da gestão florestal no estado. “Criamos o Núcleo de Informação Estratégica do Ibama, que lida com dados do histórico de processos provenientes de diversas fontes, entre elas o sistema de geoprocessamento e do serviço de denúncias Linha Verde. Além disso, fez parceria com a Polícia Federal, que agora tem participado de maneira mais ativa da fiscalização e de investigações ambientais no estado. “Já temos um bom relacionamento também com a Policia Rodoviária Federal e Policia Civil”, diz.

Já com a Sema, esse vínculo ainda está sendo construído. Embora tenha em seu quadro excelentes técnicos, o relacionamento do Ibama com o estado ainda inspira cautela. “Estamos fazendo o que nos cabe quanto à fiscalização em Mato Grosso e é importante que o Ibama continue à frente nessa função”, diz Tavares, que vê em campo motivos para não acreditar piamente em tanto otimismo do governo estadual.

Relembre a Operação Curupira.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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