Com a bandeira do progresso nas mãos, o presidente Lula já anunciou por aí que seu Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) vai fazer emergir dos rios brasileiros mais de 60 novas usinas hidrelétricas. Algumas delas têm lugar cativo no Sul do país, na bacia do Rio Uruguai. Debaixo de protestos que remetem ao episódio fraudulento de Barra Grande, o projeto hidrelétrico de Pai Querê aguarda sua vez para receber a Licença Prévia (LP) do Ibama, e gera preocupações aos ambientalistas. Organizações não-governamentais já identificaram falhas no Estudo de Impacto Ambiental do Projeto (EIA), que está, segundo elas, subestimando os danos sobre a fauna e a flora.
Não dá para falar de Pai Querê sem citar o caso Barra Grande, que com o aval do poder público, deixou enormes extensões de matas nativas debaixo d’água, na divisa de Santa Catarina com Rio Grande do Sul. Olhando de perto, há muitos pontos em comum entre os projetos, e é justamente essa similaridade que tem deixado muita gente de cabelo em pé.
Em 1998, a empresa Engevix entregou ao Ibama o Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (Eia/Rima) da usina de Barra Grande. O fato do projeto ter sido resgatado nos baús da ditadura militar, na década de 70, para ser aplicado 30 anos mais tarde, foi apenas um detalhe. O governo só foi se dar conta de que os documentos estavam defasados quando a represa já estava de pé. Quase dez mil hectares de florestas preservadas, entre elas ricos fragmentos de Florestas com Araucárias, não haviam sido mencionadas no relatório. “A maior parte a ser encoberta é constituída de pequenas culturas, capoeiras ciliares e campos com arvoredos esparsos”, resumia o documento.
A distração rendeu uma multa de R$ 10 milhões à Engevix e seu descredenciamento do cadastro de pessoa jurídica do Ibama. Mesmo assim, o projeto não podia parar. Em 2004, o governo federal, o Ministério Público e a Baesa (empreendedora de Barra Grande) firmaram um Termo de Compromisso (TC) cheio de boas intenções ambientais para o futuro. O documento foi uma espécie de penitência pelo pecado que seria cometido alguns meses depois, quando a Licença de Operação (LO) de Barra Grande foi concedida. As águas, então, rolaram, dando um safanão em inúmeras espécies de fauna e flora locais já ameaçadas de extinção.
Filme repetido
No mesmo ano em que a farsa de Barra Grande foi descoberta, o Eia/Rima de Pai Querê chegava à mesa do Ibama pelas mãos da mesma Engevix. Entidades ambientalistas logo apressaram-se para evitar a repetição do desastre. Foram à campo e colheram por conta própria dados ambientais do local onde a barragem seria construída, entre os municípios de Bom Jesus (RS) e Lages (SC). Enquanto o relatório, produzido pela empresa durante um ano, apresentou 140 espécies da flora local, em apenas cinco dias de caminhadas os pesquisadores e estudantes registraram cerca de 250.
“Das duas vezes que estive lá fotografamos o urubu-rei, uma espécie ameaçada e que está ausente no Eia/Rima”, diz o fotógrafo Adriano Becker, membro da ONG Núcleo Amigos da Terra. “Ali é o lugar onde ainda vivem o puma (onça-parda), a jaguatirica, veados e mamíferos de porte maior que não encontram mais outros lugares para viver. Os bichos estão tendo que deixar a floresta. Para onde vão?”, questiona Miriam Prochnow, presidente da Associação de Preservação do Meio Ambiente do Alto Vale do Itajaí (Apremavi).
Segundo informações do Grupo Empresarial Pai Querê – consórcio responsável pelo empreendimento – a nova hidrelétrica teria uma barragem de 150 metros de altura e transformaria 80 quilômetros do rio Pelotas em um lago de mais de seis mil hectares. Professor do departamento de Botânica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Paulo Brack participou do levantamento feito na área de influência do empreendimento, e ressalta que ambientalmente o projeto é inviável. “Naquela área há peixes endêmicos. Com o barramento e a água parada, a maior parte das espécies não vai sobreviver. Pelo menos duas dezenas delas poderiam desaparecer para sempre”, prevê. “Usando dados da própria Engevix, calculamos que cerca de 5 milhões de árvores ficariam debaixo d’água, sendo pelo menos 180 mil araucárias”.
“Querem construir justamente onde sobraram remanescentes que, para o bioma Mata Atlântica, são importantíssimos. Perderíamos parte significativa da Floresta com Araucárias e de campos naturais”, alerta Miriam, acrescentando que acima do vale a área já está para lá de descaracterizada pela agricultura e o plantio de espécies florestais exóticas, como o pinus. “Não precisa ser nenhuma sumidade ou ter QI muito elevado para concluir que Pai Querê vai acabar com o fluxo gênico na região”.
Brack lembra que o rio Pelotas-Uruguai já comporta outras três hidrelétricas em seqüência – Itá, Machadinho e Barra Grande. E classifica de absurda a idéia de afogar uma das zonas mais preservadas da Mata Atlântica. “Com a construção de Pai Querê, cerca de 80% do rio Pelotas ficariam tomados pelos empreendimentos. Já passamos dos limites. Aquela área vai suportar mais hidrelétricas? ”, pergunta. A presidente da Apremavi engrossa o coro: “É impressionante como quando um lago enche uma área, a consciência das pessoas também acaba virando água. As outras hidrelétricas já foram. Mais uma é o tiro de misericórdia na bacia do Rio Uruguai”.
No comando
Com o Termo de Compromisso assinado em 2004, ficou combinada a realização de uma Avaliação Ambiental Integrada (AAI) sobre a bacia do rio Uruguai. A Licença Prévia de Pai Querê ficou, então, condicionada a esta análise. Quem se responsabilizou por tocar os trabalhos foi a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), subordinada ao Ministério de Minas e Energia (MME), que quer fazer o projeto andar. Por licitação, três empresas ganharam o direito de realizar os estudos: Andrade e Canellas, Bourscheid e Themag. Todas trabalham para o setor hidrelétrico.
“A AAI já tem vício de origem, pois não foi feita por órgão ambiental. A avaliação considerou passível de construção todas as hidrelétricas projetadas ao longo do rio Pelotas-Uruguai. O rio original já não teria nada de sua feição natural”, critica Brack. “Todas essas empresas prestam serviços para hidrelétricas. Não tem como levar a sério um negócio desses. Está na cara que o resultado da análise é tendencioso”, reforça Adriano Becker.
Segundo o professor da UFRGS, a EPE não apresentou o relatório final da análise integrada à população. Mesmo assim, entidades ambientalistas tiveram acesso a dados parciais e confirmaram o que já se esperava: “A avaliação se baseou em estudos secundários, trabalhou até com o próprio Eia/Rima. Não tem base científica. Deveriam ter estudos de campo, dados primários”, denuncia.
Através de sua assessoria, a EPE ressaltou que a elaboração da AAI atribuída ao MME está determinada no Termo de Compromisso. A empresa ratifica que seguiu todas as diretrizes legais, através de licitação, no processo de escolha das companhias que realizariam os estudos. E reforçou que a análise não deixa a desejar, pois faz uma clara “identificação das fragilidades socioambientais” da bacia do rio Uruguai.
No centro da confusão, o Ibama – que é quem vai bater o martelo da licença – informou que o processo de licenciamento está sendo retomado “do zero”. A equipe técnica que vai se debruçar sobre o assunto foi toda renovada e serão feitas novas audiências públicas. No entanto, os estudos de impacto ambiental entregues pela Engevix – que teve o registro cassado pelo próprio Ibama – não serão deixados de lado: vão servir de base para atualizações.
“Com a retomada do processo de licenciamento ambiental do empreendimento, foi feita uma nova apresentação do projeto e dos estudos ambientais realizados no passado aos técnicos do Ibama”, explica Valter Muchagata, coordenador de Infra-Estrutura de Energia Elétrica do órgão. Sobre a trava que foi dada à Engevix, ele avisa que o problema já está resolvido: “O estudos ambientais serão doravante de responsabilidade direta do Consórcio Empresarial Pai Querê”. As empresas que fazem parte do Consórcio são CPFL Geração de Energia S/A; Alcoa Alumínio S/A, DME Energética Ltds; e Votorantim. Esta última, procurada pela reportagem de O Eco, afirmou, pela assessoria, que não há novidades quanto aos estudos reivindicados pelo Ibama.
Paradoxo
O Ministério do Meio Ambiente permanece sonolento enquanto as águas de Pai Querê rolam dentro do governo. E não é por falta de informação. Quando o Termo de Compromisso originado do caso Barra Grande saiu, o MMA estava entre os que passaram a caneta no documento. Seu principal encargo era realizar “estudos para a criação de um corredor ecológico no rio Pelotas que garanta o fluxo gênico” na região.
O estudo foi feito e a proposta, que se resume à criação de uma unidade de conservação de proteção integral que passa pelo Pelotas, está em cima da mesa. “A idéia é que seja criado um Refúgio de Vida Silvestre formando um corredor que conecte as unidades de conservação da região”, explica Fábio França, gerente de projetos do Departamento de Áreas Protegidas do MMA.
Segundo França, a necessidade de se criar uma UC de proteção integral para a área de Pai Querê já havia sido indicada por estudos anteriores do próprio ministério. Numa pesquisa visando a identificar e definir áreas prioritárias para conservação, o corredor Pelotas ganhou carimbo vermelho. “Por existir remanescentes importantes de Florestas com Araucárias e campos naturais, ocorrência de diversas espécies endêmicas etc., a região onde seria construída a usina é definida nos estudos como de importância e prioridade extremamente altas”, revela.
Mas ainda que tenha essas informações na mão, o Ministério não demonstra disposição de peitar os colegas de Minas e Energia, e tampouco o dono das licenças. “O órgão competente para dar a licença é o Ibama. Eles têm equipe para fazer a correta avaliação de tudo que está envolvido”, esquiva-se França, deixando escapar sua opinião sobre o assunto: “Os dois objetivos, de conservar e de construir hidrelétrica, são absolutamente incompatíveis. Querem fazer outro barramento num dos poucos trechos originais de Pelotas. É uma coisa ou outra”.
Sobre a possibilidade de surgir uma UC no meio do caminho de Pai Querê, o Ibama adianta que isso não seria impedimento para subir a barragem. “Basta que os órgãos gestores das UC’s sejam consultados, no âmbito do processo de licenciamento ambiental, e que seja levada em consideração os aspectos ambientais e legais aí implicados”, defende Muchagata, numa indicação de que a biodiversidade do Pelotas mais uma vez deve dar lugar a alguns megawatts.
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